sábado, 9 de setembro de 2017

A Tentação de D. Fernando. Jorge S. Correia. «Transportar Fernando I até ao alojamento que destinara para morrer talvez se transformasse no caminho da morte»

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O fim como princípio de tudo
Morre o corpo fica a fama
«(…) Caminhando como uma sombra, o Falcão pensava a cada passo na estratégia que deveria adoptar para ver sem ser visto. No seu pensamento, não era seguro ir logo do Largo de Santo António à Sé, mais acima de onde tinha a taberna, fazendo o percurso inverso para melhor surpreender o que aí vinha. Era um palpite, tinha fama de bom adivinhão, uma veia que com a experiência e os anos foi desenvolvendo. Recebida a informação virtual, deixou-se ficar pela Porta do Ferro, dali tinha uma visão alargada da Ribeira, e mesmo que não visse, ouviria com certeza os sons que os arautos do rei queriam silenciados. Mas escondido, atrás de uma ermida que ali havia, aos pouco foi identificando rumores que vinham do lado do rio: cá está, é ou não como eu imaginei? A insistente notícia do pregoeiro, repetida uma e outra vez, podia convencer muitos, mas ao Falcão, não! Via em cada atitude, em cada palavra deformada uma oportunidade, e desta vez, dizia-lhe o pressentimento, o que estava para vir era coisa de muito preço. No entanto, ao invés, mesmo esforçando o juízo para lá, da massa cinzenta que lhe ocupava a imaginativa cabeça, nessa noite, a informação que lhe chegava, dizia-lhe que a razão era de importância para o reino, mas nem um real ganhava com a espreitadela: é o rei. De certeza! Quem havia de ser? Alguém mais tem autoridade para fechar as ruas? Sim, é sua alteza. Mas qual a razão? Isto é que me estraga a cabeça! Esperemos..., concluiu o homem decidido a não sair do esconderijo.
No outro lado do rio, em Almada, el-rei Fernando I moldava o corpo ao andor que o haveria de transportar até à embarcação encostada ao cais de Cacilhas. Como se fossem unguentos, mestre Gil dava-lhe os últimos conselhos e determinava-lhe os paliativos, tudo excipientes que talvez dessem algum vigor ao pensamento doído e ao corpo devassado do rei. Antes de se agarrarem aos braços do andor, os criados seguraram o corpo de Fernando I, ajeitaram as almofadas para o aliviar do pouco peso que o corpo já tinha, mas de nada lhe puderam valer quando os assomos de tosse lhe arrancaram da garganta quantidades nunca vistas de escarros, de um volume que mais pareciam vísceras. Para o jovem rei de trinta e oito anos, uma vida que devia ser longa para a frente, cada movimento correspondia a um delírio de sofrimento. Os preparativos de trasladação do rei para a barca foram demorados. O percurso dispensou a padiola, substituída pelas cavalitas de um criado ajudado e acompanhado por mestre Gil, o cirurgião que em momento algum deixava o seu paciente de estimação ao arbítrio de um qualquer transportador.
Presenciando toda esta trasfega, mestre Gil ia pensando que o seu senhor já não tinha remédio: um homem tão bom. Será que Deus não olha aquém? Tão novo e já de morte encomendada. Depois, como a desculpar-se, argumentou a seu favor: quantas vezes, mas quantas, o aconselhei: vossa majestade não faça a guerra, não se alie a esses que só vos querem perder; os galegos vêm pelo vosso dinheiro, mais nada. Não acredite vossa alteza no Andeiro, desconfiai dele, senhor. Mal lhe virava as costas, já ele ia a caminho de mais um desacerto. Está mais do que visto. Foi ela, aquela depravada, o que havia de ser? Sim, eu sei, não me fica bem falar mal da rainha, mas que posso eu dizer de alguém que tanto mal causou ao nosso rei? Rio afora, a barca, num gingar suave ao ritmo das ondas rasteiras, permitia ao rei algum conforto, mais por o balanceio lhe trazer uma modorra anestesiante do que por ausência de sofrimento. A meio do rio, quando os contornos da cidade apagada pareciam agora mais nítidos, sua majestade tossiu tanto que os companheiros de viagem pensaram que não chegaria vivo à outra margem. Atentos, os fiéis servidores, verdadeiros amigos do rei, descansaram quando as convulsões terminaram e o rei sossegou. Mais tranquilos, deitam uma pestana contra a outra, entregam a missão aos remadores, mesmo assim convencidos de que, ao chegarem à margem lisboeta, o desembarque transformar-se-ia numa agonia. Transportar Fernando I até ao alojamento que destinara para morrer talvez se transformasse no caminho da morte». In Jorge Sousa Correia, A Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.

Cortesia de CdoAutor/JDACT