quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A Pedra da Luz. Christian Jacq. «Essa aldeia tinha um nome extraordinário: o Lugar de Verdade, em egípcio set Maet, ou seja, o lugar onde a deusa Maet se revelava na rectidão, na exactidão e na harmonia»

Cortesia de wikipedia e jdact

Néfer. O Silencioso
«O mundo inteiro admira as obras-primas da arte egípcia, quer se tratem de pirâmides, templos, túmulos, esculturas ou pinturas. Mas quem criou essas maravilhas cuja força espiritual e mágica nos toca o coração? Em caso algum hordas de escravos ou trabalhadores explorados, mas sim confrarias cujos membros, em número restrito, eram simultaneamente sacerdotes e artesãos. Sem separarem o espírito da mão, formavam uma verdadeira elite que dependia directamente do Faraó. Por sorte, possuímos uma abundante documentação sobre uma dessas confrarias que, durante cerca de cinco séculos, de 1550 a 1070 a.C., viveu numa aldeia do Alto Egipto interdita aos profanos. Essa aldeia tinha um nome extraordinário: o Lugar de Verdade, em egípcio set Maet, ou seja, o lugar onde a deusa Maet se revelava na rectidão, na exactidão e na harmonia da obra que gerações de Servidores do Lugar de Verdade realizavam. Implantada no deserto, não longe dos campos de cultura, a aldeia era rodeada por altos muros, possuía o seu próprio tribunal, o seu próprio templo e a sua própria necrópole: os artesãos viviam ali em família e gozavam de um estatuto especial, devido à importância da sua primordial missão: criar as Moradas de Eternidade dos faraós no Vale dos Reis. Ainda hoje se podem descobrir os vestígios do Lugar de Verdade visitando a localidade de Deir el-Medina, a oeste de Tebas; as partes de baixo das casas estão intactas e podem percorrer-se as ruelas por onde andaram os mestres-de-obras, os pintores, os escultores e as sacerdotisas da deusa Hátor. Santuários, zonas de confraria, túmulos admiravelmente decorados assinalavam o carácter sagrado do lugar, igualmente provido de reservas de água, de celeiros, de oficinas e mesmo de uma escola. Tentei fazer reviver esses seres de excepção, as suas aventuras, a sua vida quotidiana, a sua procura da beleza e da espiritualidade, num mundo que se mostrava por vezes hostil e invejoso. Salvaguardar a própria existência do Lugar de Verdade nem sempre foi fácil e não faltaram as mais variadas armadilhas, principalmente durante o período conturbado em que se desenrola esta narrativa. Que este romance seja dedicado a todos os artesãos do Lugar de Verdade que foram depositários dos segredos da Morada do Ouro e conseguiram transmiti-los nas suas obras.
Por volta da meia-noite, nove artesãos guiados pelo seu chefe de equipa saíram do Lugar de Verdade e começaram a subir por um carreiro estreito iluminado pela lua. Oculto por trás de um bloco de calcário, no cimo de uma colina que dominava o Lugar de Verdade, a aldeia dos construtores do Faraó instalada no deserto e rodeada por muros que preservavam os seus segredos, Méhi conteve um grito de alegria. Há vários meses que o tenente de transportes tentava apanhar informações sobre aquela confraria encarregada de escavar e decorar os túmulos do Vale dos Reis e das Rainhas. Mas ninguém sabia nada, com excepção de Ramsés o Grande, protector do Lugar de Verdade onde mestres-de-obras, talhadores de pedra, escultores e pintores eram iniciados nas suas funções essenciais para a sobrevivência do Estado. A aldeia dos artesãos tinha o seu próprio governo, a sua própria justiça e dependia directamente do rei e do seu primeiro-ministro, o vizir. Méhi só se deveria preocupar com a sua carreira militar que se anunciava brilhante; mas como esquecer que tinha solicitado a admissão na confraria e que a candidatura tinha sido rejeitada? Não se ofendia assim um nobre da sua categoria. Despeitado, Méhi orientara-se para a arma de elite, os transportes, onde o seu talento se impusera. Não tardaria portanto a ocupar um lugar importante na hierarquia. O ódio nascera no seu coração, um ódio cada dia mais forte em relação a essa maldita confraria que o humilhara e cuja simples existência o impedia de sentir uma felicidade perfeita. O oficial tomara portanto uma decisão: ou descobria todos os segredos do Lugar de Verdade e os utilizava em seu proveito, ou destruiria aquela ilhota aparentemente inacessível e tão orgulhosa dos seus privilégios. Para o conseguir, Méhi não podia dar nenhum passo em falso nem despertar qualquer suspeita. Naqueles últimos dias tinha duvidado. Os Servidores do Lugar de Verdade, segundo a designação oficial, não seriam miseráveis fanfarrões cujos pretensos poderes não passavam de miragens e ilusões? E o Vale dos Reis, tão bem guardado, não preservaria apenas cadáveres de monarcas hirtos na imobilidade da morte?» In Christian Jacq, A Pedra da Luz, Néfer. O Silencioso, Bertrand Editora, 2000, ISBN 978-972-251-135-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT