segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A Traição de D Manuel I. Jorge S. Correia. «… um destino que parecia trilhar o caminho do Jardim das Delícias, o tal sítio onde Adão e Eva, sem planeamento, encheram o mundo de malfeitores e inocentes»

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De Malines a Espanha, com Ida para Portugal
«(…) Era uma atitude assumida, bárbara também, pois roubar a irmã à mãe era o mesmo que assaltar o resto de sanidade que lhe restava. Louca, sim, mas se não lhe chegou nenhum sentimento quando encarou a filha mais velha, a mais nova era a sua razão de viver, como se a vida da menina fosse o vigor de que precisava para obter uma loucura normal. Perante o assalto ao mais íntimo de si, dona Joana esteve três dias sem comer, a chorar e a babar-se, até que, à vista do sofrimento revelado no desaprumo das acções que a transfiguravam, Leonor cedeu às súplicas da mãe, optando por seguir viagem como o irmão Carlos planeara, com o propósito de, nem mais nem menos, fazer-se coroar rei de Espanha. O futuro rei do universo, exagero semântico, só isso, pois dizia-se que o Sol nunca se punha no império de Carlos V, viera a Espanha a pedido dos governadores, uma força capaz de desagregar o reino espanhol, tantos eram os territórios sob sua tutela. Além disso, quem é que dava ouvidos a uma rainha sem autoridade nem juízo? Se com dona Joana o reino perdia a glória que os seus pais, Fernando e Isabel, os Reis Católicos, souberam construir, por que razão a grande nobreza não requisitava Carlos, uma vez que atrás de si se revelavam poder, riqueza e ambição, qualidades que depressa se fariam sentir no governo de Espanha? É que o jovem já tinha quase dezassete anos, idade mais do que suficiente para mandar e ser obedecido.
A 14 de Fevereiro de 1516, o infante Fernando, o irmão que nunca saíra de Espanha, depois de reunir o Conselho Real, escreveria a Carlos pedindo-lhe que assumisse o governo de Espanha: beijamos os vossos pés e reais mãos (...) suplicamos humildemente a vossa alteza, pois a sua vinda é tao desejada de todos e necessária para o bem e sossego destes reinos e os naturais dele e súbditos de nossa alteza, tenha por bem vir a eles. E lá veio Carlos, arrastando consigo a mana Leonor. Mas havia quem não gostasse. Os do reino de Aragão desconfiavam do jovem arquiduque, viam-no como um intrometido do Norte da Europa na alteridade castelhana, suspeitavam da sua honestidade, achavam que o que ele queria era juntar mais poder ao que já tinha. Ultrapassada esta dúvida, outro problema se levantou. Dona Joana, maluca ou não, ainda era a rainha de Espanha. Os súbditos deviam-lhe menagem. Como haveria Carlos de resolver a questão? Para o futuro Carlos I de Espanha essa questão não continha qualquer dificuldade, ou não fosse ele amado pela nobreza, quase tanto como a mãe amou o pai.
Não foi difícil baralhar o já confuso pensamento de dona Joana. Pressionada a abdicar, fê-lo de pronto, certamente sem saber muito bem o que isso significava. Estava senil, habituada a um certo bem-estar junto dos seus servidores mais chegados, mais não queria do que um reino só para si em cem metros quadrados: as aias e as amas de companhia para a entreterem, a filha mais nova junto de si, adorável criança que talvez lhe trouxesse à memória corrompida a lembrança de dias felizes. Fora isto, que a deixassem com os seus pensamentos, sadios ou inquinados, pouco lhe importava, de certeza organizados na imagem do marido que amou até à loucura. Vencidos alguns protestos de certos governadores, poucos, comparados com os que queriam Carlos a governar, o arquiduque fez-se coroar em São Paulo de Valladolid como Carlos I de Espanha, jurando, no entanto, que se Deus Nosso Senhor voltasse a dar juízo à mãe, ceder-lhe-ia o reino, voltando a governar a Flandres e o resto que por lá havia, e era muito, até que a matriarca voltasse outra vez ao que fora ou morresse. As vidas do novo rei de Espanha e da sua irmã casadoira estavam a ser empurradas por um não sei quê de bonança, um destino que parecia trilhar o caminho do Jardim das Delícias, o tal sítio onde Adão e Eva, sem planeamento, encheram o mundo de malfeitores e inocentes». In Jorge Sousa Correia, A Traição de D Manuel I, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-262-5.

Cortesia de CAutor/JDACT