domingo, 31 de dezembro de 2017

No 31. Marquesa de Alorna. Maria João Lopo de Carvalho. «Tome! Fique com a Perpétua, vá! Que linda é!, gabou Maria. Gosta, Leonor? Muito! É janota e galante, parece-se comigo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Leonor. 1755-1770
«(…) Pelas nove da manhã desse fatídico sábado de Todos os Santos, dia 1 de Novembro de 1755, a pequena Leonor saltou da cama. Sem chamar pelas criadas, dirigiu-se em bicos dos pés ao toucador para admirar os presentes que recebera na véspera, pelos seus cinco anos. O carrossel de música do avô Alorna, com figurinhas que giravam, sincronizadas, numa melodia repetida; a boneca de madeira vestida a preceito, que lhe tinham dado os avós Távora; e o serviço de chá em miniatura, de fina porcelana, com rosas pintadas, que lhe oferecera a tia Atouguia. Era lindo, pensou, podia brincar com a Maria todo o dia, a começar já pelo almoço. Deu uma corrida até ao quarto da irmã, chamando por ela com gritos de entusiasmo e sacudindo-a com força para que acordasse. Mana, mana, venha brincar! A Perpétua está com fome, não vê? Venha, mana, venha! Habituada a obedecer prontamente ao que a irmã mais velha lhe ordenasse, Maria saiu da cama, estremunhada. Tinham apenas um ano de diferença mas, apesar do feitio forte de Leonor, que era sempre a mentora de todas as brincadeiras e fantasias, entendiam-se na perfeição. Maria, que ainda esfregava os olhos, ensonada, seguiu a irmã até ao quarto, sem contestar. Sentaram-se as duas no chão e Leonor estendeu-lhe a boneca de cara pintada e fita vermelha na cabeça.
Tome! Fique com a Perpétua, vá! Que linda é!, gabou Maria. Gosta, Leonor? Muito! É janota e galante, parece-se comigo. Segure a mana nela, vou servir o chá! Só quero leite!, disse Maria. Leonor, pensativa, acabou por consentir. Leite, seja…, e uns docinhos, continuou, com os olhos a brilharem de felicidade, fingindo servir o leite à irmã e os doces à boneca. Oxalá o Pedro não venha aqui estragar tudo… Ai estas meninas, estas meninas! Era Feliciana que entrava no quarto, abanando a cabeça, depois de uma noite bem-dormida. Se a senhora vossa mãe vos vê aqui, de camisa e descalças… O que vale é que está calor, parece um dia de Primavera, nem uma nuvem no céu!, comentou, espreitando pela janela. Brincar é no quarto dos brinquedos, ou as meninas não sabem? Como se sente hoje, menina Leonor? Sua mãe estava em cuidados, passou mal? Absorta no chá que fantasiava, Leonor nem respondeu mas a palidez e as olheiras escuras que a noite lhe deixara diziam muito. Vamos lá guardar a brincadeira para depois da missa. É hora do almoço! Menina Leonor, está a ouvir?
Perante o silêncio distraído de Leonor, Feliciana voltou-se para Maria: menina Maria! Sim, Feliciana?, respondeu a mais nova, erguendo os olhos para a criada. Vamos, venha daí, seja obediente. Não!, interrompeu Leonor. A Maria só vai no fim do chá. Acostumada à docilidade de Maria e à personalidade intempestiva de Leonor, Feliciana saiu do quarto. Tinha de ir, sem mais delongas, avisar a criada de dona Leonor de que as meninas ainda não estavam vestidas para a missa na Sé, ali a dois passos do Limoeiro. Embora pouco passasse das nove da manhã, já se ouviam os brados de João Almeida Portugal a chamar pelo estribeiro-mor e pelo cocheiro, enquanto descia a escadaria do palácio. Não gostava de chegar atrasado onde quer que fosse». In Maria Lopo de Carvalho, Marquesa de Alorna, Oficina do Livro, 2011, ISBN 978-989-555-554-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT