sábado, 9 de dezembro de 2017

O Segredo do Oratório. Luize Valente. «Olhou o relógio mais uma vez e suspirou. A ida a Recife não estava programada. Quando recebeu o telefonema da professora Ethel, com passagem e hospedagem…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Milhares de judeus foram forçados a conversão em Portugal, por decreto real, no fim do século XV. Passaram a ser chamados de cristãos-novos. Em seguida veio a Inquisição (maldita). Muitos conversos fugiram para o Brasil. Alguns se embrenharam pelo Sertão. No breve período de domínio holandês no Nordeste, puderam retornar ao judaísmo. Fundaram em Recife a primeira sinagoga das Américas. Com a expulsão dos batavos, no século XVII, um pequeno grupo deixou Pernambuco. Após uma conturbada viagem chegaram à Ilha de Manhattan, onde estabeleceram a primeira comunidade judaica de Nova York».
«Ana? Ana, é você? Ana? A voz soou longe quando a mão tirou o telefone da base. Era Ioná. Mas o que ela estava fazendo no meio daquela praia? Ana reconhecia o sotaque levemente arrastado, mas não a via. O telefone pendia no ouvido, meio caído sobre o travesseiro. Aos poucos foi despertando. A praia foi sumindo e, subitamente, ela pulou da cama. Ioná!, respondeu, atónita, ao mesmo tempo que olhava o relógio na cabeceira: 6h05 da manhã. Tinha dormido menos de quatro horas. Levantou e saiu do quarto. Que bom te ouvir! Estou tentando falar há dias! Deixei vários recados e nada! Precisa saber o que está acontecendo por aqui. Desculpa não ter ligado antes...., e ter-te acordado. A voz de Ioná saiu baixa, abafada. Pode ligar à hora que quiser! Mas ainda é cedo aí... Ana sentiu que algo estava errado. O que foi, Ioná? Do outro lado, silêncio. Ioná olhou o relógio e esfregou os olhos. Não pregara o olho a noite toda. Tinha andado mais de setenta quadras, talvez oitenta. Uma leve brisa era o último resquício da madrugada fresca da Primavera. Logo surgiriam os primeiros raios de sol e, com eles, os passos, as buzinas, o entra e sai do metropolitano. Mas, naquele momento, a rua era apenas dela e de uns poucos pedestres que voltavam do trabalho ou da noitada. Ioná? Que houve? Está bem? Uma Ana aflita trouxe Ioná de volta. Ela estava sozinha, próxima ao cruzamento de Chatham Square, no coração de Chinatown. Aproximou o telefone da boca. Estava numa cabine de esquina. Eu não vou, Ana. Estou ligando para dizer que não vou. Agora foi a vez de Ana ficar muda.

14 de Março de 2000. Manhã
O relógio tocou às 5h15. Ana despertou com a sensação de quem acabava de pegar no sono. Todas as vésperas de viagem era igual. Virava para lá e para cá, levantava, deitava. Ilaga, estirado ao lado, mantinha os olhos abertos, em vigília. Fitava Ana profundamente. Dois olhos perdidos numa bola de pelos. Não me olhe assim..., não o posso levar. O cão virou o rosto e se pôs de barriga para cima. Ela afagou o peito branco e abraçou o bicho. Mesmo depois de três anos era doloroso deixá-lo a cada partida. Olhou o relógio mais uma vez e suspirou. A ida a Recife não estava programada. Quando recebeu o telefonema da professora Ethel, com passagem e hospedagem pagas, ela não pôde recusar. Não tinha como recusar. Levantou e pulou para o chuveiro. Teria uma longa jornada pela frente. Acompanhar a historiadora numa palestra era bem mais do que uma simples viagem de trabalho. Era um verdadeiro mergulho em horas e horas de conversas instigantes misturadas a deliciosas comidas e encontros inesperados. Pensando bem, era do que ela estava precisando.
Ana, corre, filhinha, nós já estamos atrasadas! Moishe, cuida bem da minha meidele, não vai dar torradas com requeijão! Ai, eu morro só de pensar que ela vai ficar aqui. Osvaldo, passeia com ela todos os dias duas vezes no mínimo, no mínimo! O segundo no mínimo saiu estridente e fino, com um toque dramático que colocava a professora Ethel no patamar das divas de Hollywood. A idade era um segredo mais bem guardado que as tábuas com os dez mandamentos, costumavam falar os alunos do curso de doutorando da Universidade de São Paulo. Ela também era dona de belíssimos olhos azuis que lhe concediam o poder de hipnotizar qualquer que fosse o interlocutor». In Luize Valente, O Segredo do Oratório, 2012, Editora Record, Brasil, 2012, ISBN 978-850-140-170-0.

Cortesia de ERecord/JDACT