domingo, 28 de fevereiro de 2021

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «Infelizmente, não via parisienses da segunda estirpe e era nesse momento que lhe nascia na alma uma nova vaga, mais racional e compreensiva: os citoyens estavam em pânico…»

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Paris, 4 de Junho de 1940

«(…) Durante as horas seguintes, Carol vagueou por Paris numa apatia entristecida. Nem a Hirondelle revelou a habitual magia e, pela primeira vez, não se sentiu a voar. Aliás, a maior parte do tempo levara a bicicleta pela mão ou sentara-se num banco qualquer, nas Tulherias, nos Campos Elísios, mais tarde em frente à Catedral de Nôtre-Dame, a matutar, deprimida. Não estava apaixonada por Jean-Luc, ele não lhe tinha partido o coração, a questão não era essa! Numa primeira vaga de raiva, concluiu que aquela separação inesperada agravava a sensação dolorosa por ser um manifesto da mudança radical de Paris. Jean-Luc era um símbolo francês, um exemplo de falta de resiliência, de vertigem medrosa e de uma mesquinha ausência de solidariedade. Tal como no romance de Victor Hugo, Os Miseráveis, no presente também existiam os fugitivos e os lutadores que construíam barricadas nas ruas! Jean-Luc pertencia ao grupo dos primeiros.

Infelizmente, não via parisienses da segunda estirpe e era nesse momento que lhe nascia na alma uma nova vaga, mais racional e compreensiva: os citoyens estavam em pânico e, tendo familiares nas províncias, era natural colocarem-se a uma distância segura dos panzers. Jean-Luc fora lúcido, se não partisse hoje de comboio, poderia não o conseguir fazer depois. Após essa curta acalmia, uma terceira onda de emoções levantava-se, crispada e barulhenta, denegrindo o amigo por a haver ignorado, por não mostrar sequer a decência e o cavalheirismo de a informar. Ela não teria revertido a decisão dele, nem esperado uma sugestão para o acompanhar. Mas fugir como um tolo? Caramba, não se viam ainda botifarras nazis nos boulevards e Jean-Luc nem sequer era judeu, comunista, ou soldado, não estava no topo das preocupações alemãs!

De repente, a minha prima lembrou-se da opinião de Polly sobre os franceses e deu por si a concordar com a americana. Andavam aterrados e o desaparecimento intempestivo de Jean-Luc provava-o. Não que o namorado apresentasse falta de apetite sexual, essa parte não validava a teoria de Polly, mas…

Um pensamento intrometeu-se e o coração magoado de Carol acelerou a batida. E se estivesse grávida? Jean-Luc fora-se embora sem qualquer preocupação com essa minúscula probabilidade! Esquecera-a sem lhe dar sequer um romântico beijo de despedida, na gare, como no final dos filmes americanos. Porém, a minha prima dera-se e, mesmo com as precauções tomadas, podia sempre existir um percalço! Na universidade, conhecia pelo menos duas alunas que haviam engravidado sem querer. Aquela dor na barriga, que já sentira várias vezes, seria um pequeno embrião a germinar? Enxotou a tolice. Não estava grávida, o sentimento de abandono é que a fazia pensar assim. A única conclusão certa era a de que o namorado não prestava, ponto final. Decidida, começou a desconstruí-lo. Que parvo, sempre com a boca torta de nojo, ao vê-la comer mexilhões! O odor dele também lhe repugnava, mas o pior era mesmo o cabelo, oleoso, lambido e raramente lavado. Isso e a incapacidade para dar uns passos de dança. Não tinham mesmo nada a ver um com o outro, aquela fora uma mera ligação entre dois solitários, fraca e ténue!

Até na cama era maçador, um aspirante a médico sem qualquer curiosidade pela anatomia feminina. Nem por uma vez a beijara nos mamilos ou lá em baixo e possuía-a sempre deitado em cima dela, que abria as pernas e pronto, um calorzinho no ventre e já está! Agora que pensava nisso, nunca ficara por cima, a tal posição de que Polly tanto gostava. Aliás, o lendário prazer explosivo de que as outras mulheres falavam, que se devia procurar como se fosse o Santo Graal dos romances da Távola Redonda, nunca Carol o encontrara! Jean-Luc era um banal iniciador, sem prática ou jeito, que nem sequer ascendia ao nobre estatuto de ter sido o seu primeiro homem. A dado momento, tanta era a sua irritação que até olhou com brusquidão para a Hirondelle quando esta tombou com o vento, talvez por estar mal encostada ao banco. Levantou-se, furiosa, prestes a brindar com palavrões a bicicleta, como se esta fosse uma extensão de Jean-Luc. Porém, um raio de lucidez atravessou-a: não seriam justos tais desatinos, a Hirondelle nunca lhe falhara, nem um mísero furo tivera em dois anos, revelara-se um monumento de resiliência. Enquanto Paris a abandonava, a fiel bicicleta continuava com ela! Então, levantou-a do chão e acarinhou-a, passando a palma da mão direita no selim. Se algo parecido com amor existia no seu coração, era por aquela bicicleta!» In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT

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