quinta-feira, 24 de novembro de 2022

A Obra Poética. José Pina Martins. «Os dois pastores do diálogo discordam de critério, quanto às virtudes a preferir na mulher, já que um opta pela beleza e outro mais solidamente pelos bens materiais…»

 

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«(…) Pessimismo antropológico e cosmológico até, mas nem sempre expresso através das formas literárias consuetas, dos achadilhos conceituosos da tese e da antítese, como em Petrarca e nos petrarquistas, da afirmação e da negação, da dúvida e da fé, da ilusão e da sua consciência lúcida (desilusão), da aceitação e da atitude inconformista, do crer e do duvidar. É talvez especificamente melódico o recurso à expressividade de um humorismo transcendente para significar a problemática da dor pelo próprio sujeito experimentada. A vocação do moralista ergue-o na passagem do concreto para a reflexão sentenciosa, mas sem um divórcio temático do aforístico em relação ao vivencial ou ao religioso.

Não raro, as fontes clássicas insinuam na palavra poética o recurso a uma erudição profundamente assimilada, mas porque o poeta sabe colocá-la no seu verdadeiro plano de arte ou de artifício, nunca a cultura abafa a experiência, e por isso nunca o artifício sábio ou técnico se sobrepõe à arte. Mas estamos em crer que os sonetos mais artisticamente valiosos de dom Francisco Manuel são os de tema predominantemente religioso, como Antes da Confissão. Já num outro estudo tivemos oportunidade para relevar os elementos essenciais de valorização estética desta composição e não vamos aqui repetir-nos. A palavra poética, nesta parte de As Segundas Três Musas, assume, como na Retórica renascentista, a plenitude de um valor directamente ligado ao humano. Não há dúvida de que uma tal poesia exprime, na arte, o próprio homem.

As Éclogas.

A Sanfonha de Euterpe, segunda parte de As Segundas Três Musas, é formada por éclogas e cartas. Já se observou que falta às primeiras o ambiente genuinamente pastoril que deveria caracterizar o género, mas nisto, como aliás na própria substância doutrinal, o Melodino segue a lição e o exemplo de Sá de Miranda, seu modelo também nas cartas.

A écloga Casamento, que integra o cap. II de PEM, é talvez, neste domínio, o exemplo mais representativo. O tema era muito do agrado do nosso autor, que o tratou também na Carta de Guia de Casados.

Os dois pastores do diálogo discordam de critério, quanto às virtudes a preferir na mulher, já que um opta pela beleza e outro mais solidamente pelos bens materiais. O cura, discreto e avisado segundo o cânone do ideal normativo da época, concilia as duas opiniões de acordo com um ideal de equilíbrio e moderação. A lição do meio termo é igualmente preconizada nas éclogas Temperança e Rústica. Mediano, aliás, é o nome de um dos interlocutores de Temperança, cujo conselho, de resto, pode resumir-se nos dois versos que, com outros, se encontravam gravados no templo aonde os dois pescadores (Afouto e Medroso) são levados por Mediano: Caminha sempre a um justo fim direito, / fugindo todo extremo perigoso. E assim como, em Basto, Gil exprime as ideias de Sá de Miranda, na écloga Rústica, por exemplo, Cremente tem palavras cujo tom de pessimismo profundo e sentido reflecte a experiência dolorosa de dom Francisco Manuel de Melo. A lição de moralidade, que informa o suco didáctico das éclogas, não apagou o sinete autêntico de transposição da vida vivida na palavra poética. Mas as cartas são, a este respeito, ainda mais interessantes.

[...]» In José Pina Martins, A Obra Poética de D. Francisco Manuel de Melo, HALP 31, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, ISSN 1645-5169.

Cortesia de FCGulbenkian/JDACT

JDACT, José Pina Martins, Isabel Allegro Magalhães, Poesia, D. Francisco Manuel de Melo, Século XVII,