domingo, 6 de novembro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Chuvisca. O viajante liga e desliga o limpa-vidros, num jogo que vai descobrindo a paisagem e logo a deixa mergulhar, imprecisamente, como dentro dum aquário turvado»

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

«(…) O viajante começa a descer por uma estrada ainda pior. Range e protesta a suspensão do automóvel, e é um alívio quando, entre charcos e lama, aparece a Junqueira. Não é lugar de particular importância. Mas, como o viajante é capaz de inventar as suas próprias obras de arte, aqui está esta fachada de capela barroca sem telhado, com uma exuberante figueira a crescer lá dentro e já a ultrapassar a altura da empena. Por um olho-de-boi se chegaria aos figos, se a figueira não fosse, afinal, brava. Decerto causam espanto no povo estas admirações. Aparece por cima de um muro a cabeça duma rapariga, depois outra, e logo a seguir a mãe delas. O viajante faz uma pergunta qualquer, dão-lhe resposta em repousada voz transmontana, e depois a conversa pega, não tarda que o viajante saiba casos desta família, e um deles, terrível história de princesas encantadas e fechadas em altas torres, é que estas duas raparigas nunca daqui saíram, nem para ir à Torre de Moncorvo, apenas treze quilómetros. É o pai que não deixa, isto de raparigas é preciso todo o cuidado, o senhor bem sabe. O viajante tem ouvido dizer, por isso não nega nem confirma: E a vida, como vai por aqui? Arrastada, responde a mulher.

Conversas destas deixam sempre o viajante mal-humorado. Por isso quase não tem olhos para Vila Flor, teve de abrir o guarda-chuva, foi levar recado a um conhecido, espreitou o S. Miguel por cima da porta da igreja. O viajante tem vindo a reparar que há por estes lados uma grande devoção ao arcanjo. Já em Mogadouro lá estava, num altar das almas, e noutros sítios também, preocupados todos com as probabilidades do purgatório. Aqui, quando já se dispunha a continuar caminho, o viajante emenda a mão. Afinal, o pórtico desta matriz do século XVII é digno de grandes atenções e demora suficiente: as colunas torsas, os motivos florais, a geometria doutros armam um conjunto que fica na memória. Também fica na memória, infelizmente, um painel de azulejos embutido numa parede em que um cidadão Trigo de Morais dá conselhos aos filhos. Não são maus os conselhos, mas foi péssima a ideia. E que importância se dava o conselheiro para assim vir moralizar à praça pública aquilo que deveria ser recomendação de portas adentro! Enfim, esta viagem a Portugal terá de tudo.

Voltou a chover. Não se vê ninguém no largo quando o viajante vira a última esquina que para ele dá. Mas ao atravessar sente que o seguem por trás das vidraças e há quem o olhe seco de dentro das lojas, talvez com desconfianças. O viajante parte como se carregasse às costas as culpas todas de Vila Flor ou do mundo. Provavelmente é verdade.

A direito para o norte, por estradas de sobe e desce, chega-se a Mirandela. Para o viajante, é apenas ponto de passagem, embora já no caminho para Bragança vá cismando nas ignoradas razões por que a ponte que atravessa o rio Tua tem desiguais todos os arcos, e se a originalidade já vem dos romanos, seus primeiros construtores, ou é preciosismo do século XVI em que alguma reconstrução houve. Desagrada muito ao viajante não saber os motivos de coisas tão simples como esta de ter uma ponte vinte arcos e nenhum igual a outro. Porém, não tem remédio senão conformar-se: havia de ter que ver, ficar a interrogar as mudas pedras, enquanto as águas iam murmurando nos talha-mares.

Para estes lados, há umas povoações a que chamam aldeias melhoradas. São elas Vilaverdinho, Aldeia do Couço e Romeu. Por causa da singularidade do nome, e também porque um grande letreiro informa haver aí um museu de curiosidades, o viajante escolhe Romeu para maior demora. Porém em Vilaverdinho é que soube que a ideia das melhorias foi de um antigo ministro de Obras Públicas, tanto que de ideia humana se gaba de ter sido, em inscrição adequada, confirmada pelas letras abertas em enorme pedregulho à beira da estrada, em que se afirma que os habitantes nunca esquecerão um presidente que ali foi à inauguração, em Agosto de 1964. Estas inscrições são sempre duvidosas, imagine-se o que irão pensar os historiadores e os epigrafistas futuros se derem com a lápide e acreditarem. À frente do nome desse presidente, alguém escreveu ladrão, vocábulo perturbador que nos dias de amanhã talvez seja desconhecido.

Em Romeu, há o museu.Tem de tudo como na botica: automóveis de dona Elvira, carruagens e arreios, telefonias e galenas, cítaras, caixas-de-música, pianolas, relógios muitos, telefones dos primeiros que vieram, alguns trajos, fotografias, enfim, um tesouro pitoresco de pequenos objectos que fazem sorrir. São os antepassados toscos das tecnologias novas que nos vão transformando em serventuários e ignorantes. O viajante, quando sai, encolhe os ombros, mas agradece à família Meneres, que foi da ideia. Sempre aprendeu alguma coisa.

Chuvisca. O viajante liga e desliga o limpa-vidros, num jogo que vai descobrindo a paisagem e logo a deixa mergulhar, imprecisamente, como dentro dum aquário turvado. À esquerda, a serra da Nogueira já é uma senhora serra, com os seus mil e trezentos metros. Um outro jogo divertido é o das passagens de nível, felizmente todas abertas quando o viajante passa. Em trinta quilómetros são nada menos que cinco: Rossas, Remisquedo, Rebordãos, Mosca, e outra de que não ficou o nome. E ainda mal, que neste caso são os nomes que se salvam». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

 JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,