quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Horizonte Perdido. James Hilton. «O avião se debatia e agitava entre golfadas de ar, tão violentamente como um bote de remo nas ondas encrespadas. Os quatro passageiros mal se podiam manter sentados»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Conway não se inquietou. Estava habituado às viagens aéreas e confiava nos pilotos. Além disto, não tinha motivo algum para desejar chegar depressa a Peshawar. Nada tinha de particular a fazer ali e não se sentia ansioso por ver ninguém. Era-lhe, pois, de todo indiferente que a viagem durasse quatro ou seis horas. Não era casado; não o aguardava uma terna recepção ao desembarcar. Tinha amigos na cidade e provavelmente alguns deles o levariam ao clube, onde beberiam juntos; era uma perspectiva agradável, mas não de molde a causar-lhe grande alvoroço. Também não encarava com saudades a década transcorrida. Fora um período igualmente agradável, ainda que não o tivesse satisfeito inteiramente. Instável, bom por intervalos, tendendo a perturbar-se; tal era o sumário meteorológico daquela época de sua vida, bem como da história mundial. Passaram-lhe pela memória Baskul, Pequim, Macau e outros lugares. A cena mais remota na sua lembrança era Oxford, onde, depois da guerra, passara dois anos fazendo prelecções sobre história oriental, respirando o pó em bibliotecas cheias de sol, descendo a High Street de bicicleta. A visão era atraente, mas não o comovia; parecia-lhe, em certo sentido, que ele era apenas uma parte de todas as coisas que pudera ter sido.

Uma sensação gástrica muito sua conhecida advertiu-o de que o avião começava a descer. Teve a tentação de admoestar Mallinson pelo seu nervosismo, e tê-lo-ia feito sem dúvida se o moço não se houvesse levantado subitamente, batendo com a cabeça no tecto e acordando Barnard, o americano, que estava a cochilar no seu canto, do outro lado do estreito corredor. Meu Deus!, exclamou Mallinson, espiando pela janela. Olhem para baixo! Conway olhou. Não era aquela, certamente, a vista que esperava, se é que esperava alguma coisa. Em vez dos acantonamentos em elegante disposição geométrica e dos rectângulos mais compridos dos hangares, só se avistava um nevoeiro opaco que velava uma imensa desolação. O avião, que ia descendo rapidamente, achava-se ainda a uma altura extraordinária para um voo comum. Avistava-se, cerca de uma milha aquém da névoa mais sombria dos vales, o espinhaço rugoso de uma longa fila de montanhas. Era o cenário típico da fronteira, se bem que Conway jamais o tivesse visto de tamanha altura. Não era, e isto lhe causou estranheza, sítio algum próximo de Peshawar. Não reconheço esta parte do mundo!, observou.

Depois, e mais discretamente, por não querer assustar os outros, acrescentou ao ouvido de Mallinson: Parece que você tinha razão... O homem errou mesmo o caminho! O avião descia com espantosa rapidez e o ar ia ficando cada vez mais quente. Dir-se-ia que a terra adusta que se avistava lá em baixo era um forno, cuja porta se abrira de repente. Acima do horizonte erguiam-se picos de montanhas, um após outro, recortando no ar a silhueta escarpada. Já o voo seguia a curva de um vale, cuja base estava toda semeada de rochedos e vestígios de cursos de água ressequidos; pareciam cascas de nozes espalhadas pelo chão. O avião se debatia e agitava entre golfadas de ar, tão violentamente como um bote de remo nas ondas encrespadas. Os quatro passageiros mal se podiam manter sentados.

Parece que ele vai aterrar!, gritou o americano com voz rouca. Mas não pode!, retorquiu Mallinson. Só se for louco tentará semelhante coisa! Vai despedaçar-se, e então… Mas o piloto aterrou. Abria-se um pequeno espaço livre à beira de um barranco e o aparelho, com muita perícia, depois de alguns baques e solavancos, pousou sereno. O que veio depois, contudo, foi mais espantoso e menos tranquilizador. Apareceram nativos barbudos, de turbante à cabeça, que acorriam de todos os lados cercando o avião e impedindo que alguém saísse dele, a não ser o piloto. Este saltou em terra, mantendo com eles animada palestra, durante a qual se verificou que não somente não era Fenner como até não era inglês, e quiçá nem europeu. Enquanto falavam iam carregando latas de petróleo de um depósito próximo e despejando-as nos tanques, de capacidade excepcional. Os gritos dos quatro passageiros aprisionados eram recebidos com arreganhos de dentes e desdenhoso silêncio. E à mais leve tentativa de desembarque correspondia logo um movimento ameaçador de vinte espingardas». In James Hilton, Horizonte Perdido, 1986, Publicações Europa-América, 1986, ISBN 978-972-101-163-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

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