sábado, 6 de janeiro de 2024

A Aldeia das Almas Desaparecidas. Richard Zimler. «Penso muitas vezes que ela nunca se sentia confortável na companhia de outros adultos, e que nós, as crianças do mundo, éramos o seu refúgio»

jdact

A Floresta do Avesso. A magia segreda-me ao ouvido

«Quando tinha três dias de idade, a magia veio ter comigo na ponta dos pés, tomou-me nas suas mãos grandes e calosas e murmurou-me ao ouvido orações orvalhadas com odor a coentros. Eram sussurros em castelhano na sua maioria, mas condimentados com frases de som gutural numa língua que, quando tinha cinco anos, me foi revelada como sendo a falada por Jesus e os seus apóstolos.

Quando fecho os olhos, agora, vinte e um anos mais tarde, a intimidade daquelas palavras provoca-me arrepios. E apercebo-me de que uma parte de mim continua a ouvir as vozes quentes e amortecidas da minha infância, mesmo quando só há silêncio à minha volta.

A feiticeira que me pegava com as suas grandes mãos parecia-me um ser poderoso e gigantesco. Mas na realidade era uma curandeira de cinquenta e um anos, de vulto frágil e ossudo, muito coxa e com espessas cicatrizes roxas nos pés, tão horríveis de se ver que me faziam chorar quando olhava para elas. Com doze anos, eu já era mais alto do que ela.

A avó Flor.

Tínhamos acabado de regressar do meu baptismo na igreja da aldeia, e ela pôs-se a mascar folhas de coentros, num esforço para manter a compostura. Ao longo de toda a cerimónia permanecera de pé junto à porta da entrada, passando os dedos pela gola de pele do casaco de inverno, desejando não sentir o coração tão apertado pelo medo.

Penso muitas vezes que ela nunca se sentia confortável na companhia de outros adultos, e que nós, as crianças do mundo, éramos o seu refúgio.

Adonai era um nome dado a Deus no Antigo Testamento e uma das poucas palavras que a minha avó sabia na língua da Bíblia. Nas orações que me segredou ao ouvido naquele dia, arrastou lentamente as suas três sílabas. Para manter aquela figura doce e fugidia do Senhor na minha boca por mais uns momentos, dizia-me, sempre que voltava a contar-me aquela história.

Depois de a avó Flor ter invocado Adonai para abençoar a cerimónia que estava prestes a iniciar, encostou os lábios à minha barriga e soprou ruidosamente, para me fazer rir; a seguir, baixou-se e depositou-me no nosso velho tapete de pele de ovelha, e a luz alaranjada da lareira envolveu-me no seu calor reconfortante». In Richard Zimler, A Aldeia das Almas Desaparecidas, A Floresta do Avesso, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-580-6.

 Cortesia PortoEditora/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Literatura, Cultura, Século XVII,