sábado, 13 de janeiro de 2024

Arrancados da Terra. Lira Neto. «O vozerio do populacho era entrecortado pelo repicar dos sinos das igrejas, pelo estrépito das matracas e pelo entoar contínuo de cânticos religiosos, a exemplo do Te Deum laudamus (Nós te louvamos, Senhor) e o Veni Creator Spiritus (Vem, espírito criador)…»

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Que o Medo os Retraia do delito (1492-1594)

«Aos 23 dias de Fevereiro do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1597, o quinto dia do mês de Adarde 5357, no calendário judaico, um friorento domingo de Inverno, Gaspar Rodrigues Nunes, 39 anos, comerciante com negócio instalado próximo ao Arco dos Pregos, pórtico de pedra da antiga muralha medieval de Lisboa, constava do grupo de noventa penitentes obrigados a envergar o traje da infâmia, a marca da desonra. A túnica de linho tingido de amarelo sem golas ou mangas, com meras aberturas para a cabeça e os braços, o chamado sambenito (corruptela provável de saccus benedictus, saco bendito) era o sinal imposto pela Inquisição (maldita) para identificar os hereges, os blasfemos, os apóstatas, os bígamos, os devassos, os sodomitas e, sobretudo, os que haviam atentado contra a fé em Cristo ao professar o judaísmo.

Uma forma de distinguir e apartar os perversos, as almas desviadas do rebanho de Deus, do convívio com os ditos bons cristãos e homens de bem do reino. Separar, a partir daquele momento e para todo o sempre, os que andam nas trevas dos que caminham na luz. Pela exibição ostensiva de suas culpas, os infiéis seriam expostos ao escárnio e ao desprezo dos considerados puros de coração. Quid enim magis persequitu vitam bonorum quam vita iniquinorum? Que coisa persegue mais a vida dos bons que a maldade dos maus?, indagava, em sermões, Afonso de Castelo Branco, bispo de Coimbra.

Na penumbra, antes dos primeiros raios da manhã, Gaspar e os demais sentenciados foram postos a caminhar em fila, pés descalços e velas amarelas nas mãos, cada um deles ladeado por dois servidores do Tribunal do Santo Ofício. À frente do grupo iam os frades dominicanos com seus hábitos brancos e negros, trazendo o estandarte da Inquisição (maldita), no qual constavam a cruz de madeira, símbolo da cristandade; a espada, distintivo do castigo contra os ímpios; e o ramo de oliveira, insígnia da benevolência com os pecadores arrependidos. Misericórdia e justiça, lia-se, a propósito, na divisa bordada às margens da flâmula.

Num cortejo subsequente à procissão dos condenados, planeado para sublinhar a autodeclarada dignidade de seus componentes, seguia a tropa de comissários do Santo Ofício, alguns à sela de cavalos ornamentados com penachos e arreios solenes. Abriam passagem para os mais altos dignitários da instituição, bem como para os juízes dos tribunais seculares e, por fim, para o inquisidor-geral, António Matos Noronha, por mercê de Deus e da Santa Igreja de Roma, bispo de Elvas,, gorro negro à cabeça, escoltado à luz de tochas empunhadas por nobres de destacada linhagem.

A fileira humana na qual marchava o inditoso Gaspar Rodrigues tinha início na saída dos cárceres do Tribunal, no Palácio dos Estaus, prédio mandado erguer em 1449 para albergar membros e convidados da corte, mas que desde 1571 servia de sede à Inquisição. Da praça do Rossio, a malta atravessou ruas e esplanadas centrais da cidade, sob os apupos e chacotas dirigidos pelos populares, até chegar ao Terreiro do Paço, defronte ao palácio real, junto ao Tejo. Ali, havia sido armado um cadafalso de madeira, estrutura em forma de palco flanqueada por um conjunto de arquibancadas, reservadas aos sentenciados. À margem do quadrilátero, espalhada por toda a redondeza, uma multidão aguardava, excitada, a chegada do préstito ao lugar no qual seria celebrada a sequência do auto de fé, ritual maior da Inquisição, evento carregado de simbologias encenadas de modo minucioso para despertar sentimentos de respeito, admiração e temor. Parece muito aceitado celebrar essa solenidade nos dias festivos, sendo proveitoso que muita gente presencie o suplício e o tormento dos réus para que o medo os retraia do delito, previa o Directorium inquisitorum, o Manual dos inquisidores.

O vozerio do populacho era entrecortado pelo repicar dos sinos das igrejas, pelo estrépito das matracas e pelo entoar contínuo de cânticos religiosos, a exemplo do Te Deum laudamus (Nós te louvamos, Senhor) e o Veni Creator Spiritus (Vem, espírito criador), sobreposição de sons que conferia uma atmosfera ainda mais fragorosa ao espectáculo, a essa altura já iluminado pelo lusco-fusco do alvorecer.

Era costume o próprio rei, sentado ao lado da rainha e dos filhos, assistir à cerimónia do alto das janelas do palácio, convertidas em camarotes. Porém, havia dezasseis anos isso não ocorria, pois desde 1581 Portugal passara a ser governado pelo monarca espanhol, Filipe II, decorrência da União Ibérica, instituída após a crise dinástica provocada pelo trágico desaparecimento do jovem Sebastião na batalha contra os mouros nas areias do Marrocos. Com Filipe II governando a partir de Madrid, os lugares da sacada real, durante os autos de fé realizados em Lisboa, passaram a ser honrados pela assistência do Conselho de Governadores do Reino». In Lira Neto, Arrancados da Terra, Penguin Random, chancela Objectiva, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.

 

Cortesia de PenguinRandom/Objectiva/JDACT

 

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