terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Coração Tão Branco. Javier Marías. «… só que eu já a usava na esquerda, fazia duas semanas, pouco tempo, não me acostumara. Também o relógio, preto e grande, aquele homem usava no pulso do mesmo braço e eu, em compensação, no do outro. Devia ser canhoto»

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« Aquele segundo eu não podia dar-lhe naquele momento, como era possível, notava com força as duas presenças que quase me paralisavam e emudeciam, uma fora e outra dentro, diante de meus olhos e diante das minhas costas, como era possível, sentia-me obrigado para com ambas, tinha de haver um erro ali, eu não podia me sentir culpado para com minha mulher por nada, por uma demora mínima na hora de atendê-la e acalmá-la, e menos ainda para com uma desconhecida ultrajada, por mais que ela acreditasse que me conhecia e que era eu quem a ultrajava. Ela estava fazendo malabarismos para voltar a pôr o sapato sem pisar no chão com o pé descalço. A saia era um pouco apertada para realizar essa operação com êxito, seus pés de ossos demasiado compridos, e enquanto tentou não gritou, mas resmungava, não podemos estar muito atentos aos outros enquanto tratamos de recompor a aparência. Não teve outro remédio que apoiar o pé, que se sujou no acto. Voltou a levantá-lo como se o chão a houvesse contaminado ou queimado, sacudiu a poeira como Luísa sacudia a areia seca nas praias justo antes de abandoná-las, às vezes ao cair da noite; enfiou os dedos do pé no sapato, a parte da frente; depois, com o indicador (da mão livre da bolsa), ajustou a tira do calcanhar que sobressaía sob aquela tira (a tira do soutien de Luísa devia continuar caída, mas eu não a via agora). Suas pernas robustas pisaram outra vez com firmeza, batendo no pavimento como se fossem cascos. Deu mais três passos sem erguer ainda a vista e, quando a ergueu, quando abria a boca para me insultar ou me ameaçar e iniciava pela enésima vez o gesto preênsil, garra de leão, aquele que agarrava e significava Você não vai se livrar de mim ou Vai comigo para o inferno, suspendeu-o no ar, e o braço nu ficou congelado no alto, como o de um atleta.

Vi sua axila recém-raspada, tinha se aprontado toda para o encontro. Olhou uma vez mais à minha esquerda e olhou para mim e olhou à minha esquerda e para mim. Mas o que está acontecendo?, voltou a perguntar Luísa de sua cama. Sua voz era temerosa, expressava um temor misto, interior e exterior, tinha medo do que estava acontecendo em seu corpo, tão longe de casa, e do que não sabia que estava acontecendo, ali na sacada e na rua, ou que estava acontecendo comigo e não com ela, os casais logo se acostumam a que tudo aconteça com ambos. Era de noite e nosso quarto continuava às escuras, devia sentir-se tão ofuscada que nem acendia o abajur da mesinha-de-cabeceira a seu lado. Estávamos numa ilha.

A mulher da rua ficou com a boca aberta sem dizer nada e levou a mão ao rosto, a mão que foi deslizando decepcionada, envergonhada e mansa para baixo desde cima. Já não havia mal-entendido. Ai, desculpe, disse-me ao cabo de uns segundos. Confundi o senhor com outra pessoa. Num instante toda a fumaça tinha-se dissipado e ela havia compreendido, isso era o mais grave, que tinha de continuar esperando, talvez onde estivera de início, não mais sob as sacadas, teria de voltar ao ponto escolhido originalmente, ao outro lado da rua além da esplanada, para lá arrastar com celeridade e ódio seu salto afilado após seus dois ou três passos, três machadadas e espora, ou espora depois dos machados. Era uma pessoa repentinamente desarmada, dócil, perdera toda a sua cólera e suas energias, e creio que não lhe importava tanto o que eu pudesse pensar de seu engano e de seu mau génio, afinal era eu um desconhecido a seus olhos verdes, quanto se dar conta de que seu encontro ainda corria o risco de não acontecer.

Fitava-me com seu olhar cinzento de repente absorto, com um pouco de desculpa e um pouco de indiferença, de desculpa o justo necessário, pois era a amargura que prevalecia. Ir embora ou esperar de novo, depois de ter concluído a espera. Não se preocupe, disse eu. Com quem está falando?, perguntou-me Luísa, que sem minha assistência ia saindo de seu estupor, embora não das trevas (a voz era um pouco menos rouca e sua pergunta mais concreta; talvez não estivesse entendendo que era noite).

Mas ainda não respondi nem me aproximei da cama para sossegá-la e arrumar os lençóis para ela, porque nesse momento abriram ruidosamente as portas da sacada à minha esquerda e vi aparecerem dois braços de homem que se apoiaram na balaustrada de ferro, ou a seguraram como se fosse uma barra móvel, e chamaram: Miriam!

A mulata, indecisa e confusa, tornou a olhar para cima, agora já sem dúvida à minha esquerda, sem dúvida para a sacada que se abrira e para os braços fortes que eram tudo o que eu via, os braços compridos do homem em mangas de camisa, as mangas arregaçadas, brancas, os braços peludos, tanto ou mais do que os meus. Eu havia deixado de existir, desaparecera, também estava de mangas arregaçadas, tinha levantado as mangas ao sair à sacada para debruçar-me, fazia pouco, mas agora eu havia desaparecido por ser eu outra vez, isto é, por ser para ela ninguém. No anular da sua mão direita o homem trazia uma aliança como a minha, só que eu já a usava na esquerda, fazia duas semanas, pouco tempo, não me acostumara. Também o relógio, preto e grande, aquele homem usava no pulso do mesmo braço e eu, em compensação, no do outro. Devia ser canhoto». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,