sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Casamento de Sonho. Domingos Amaral. «Hoje, também os pais sofrem disso, e ficam tão ou mais desesperados do que as mães, pois perderam a capacidade de imaginar o mundo sem os filhos, e nesse vazio nasce-lhes uma perturbação…»

jdact

Prólogo

Rafael, Dezembro de 2012

«Como dois noivos numa festa de casamento, valsando ao som do Danúbio Azul, a economia e o amor movem-se juntos e ao mesmo ritmo. Se a música acelera, em crescendo, a economia puxa pelo amor e há mais casamentos românticos e filhos a nascer. Mas, quando o par abranda, é porque a economia se retraiu primeiro e o amor logo a segue, murchando também.

Se na economia crescem os rendimentos, no amor crescem os rebentos; mas, se na economia nascem as dívidas, no amor nascem as dúvidas, ninguém mais pensa em procriar e multiplicam-se (terrível costume!) as separações dolorosas e as acesas disputas sobre dinheiros e patrimónios.

Para a maior parte dos seus amigos e para as respectivas famílias, a separação de Leonardo e Constança justificou-se com essa racionalidade fria e foi a queda da economia que precipitou o desmoronar do amor, como se o final daquele casamento não passasse do resultado lógico de uma equação matemática.

Houve quem tenha dito que o casal entrou em rotura devido à desgraça das empresas de Leonardo, ou porque Constança não se soube adaptar ao fim dos luxos, coisas assim. Na mágoa dorida e raivosa dela, e até na escandalosa infidelidade dele, foram sempre encontrados motivos financeiros de justificação, como se a degradação geral das emoções e dos desejos de ambos, os seus conflitos abertos, as suas abismais decepções ou os seus erros vulgares fossem meras consequências do desarranjo geral da economia do país e do mundo, e não existisse uma causa mais profunda, um pecado original mais impuro e imundo, que explicasse tantos e tão perturbadores estragos.

Rafael, amigo de ambos e que neste momento está sentado na cadeira de um avião, sabe que esse segredo antigo existe e mancha aquela história de amor; sabe que o falhanço daquele casamento não se explica apenas culpando a economia pela destruição do amor. Contudo, é o único que o sabe e por isso tem uma narrativa alternativa, diferente da dos outros familiares e amigos, e por isso também é o único que, além de se sentir triste, se sente culpado. Sentado a seu lado está o seu melhor amigo, Leonardo, que nem fala. Não sorri à hospedeira, não olha sequer pela janela do avião, que vai descolar em breve da pista do aeroporto da Portela. A sua imaginação espiritual encontra-se contaminada pela incerteza, teme as consequências de um acidente no Brasil e teme pela mulher (ou ex-mulher?, como defini-la, se eles se separaram, mas nunca se divorciaram?). Mais do que isso, teme pela saúde dos seus filhos, e reza em silêncio.

Já Rafael recorda muito e culpa-se. Ao longo da viagem até Salvador, criará dentro do coração a certeza de que podia ter evitado o que se passou, o que se está a passar e até o que se virá a passar, que ele ainda não sabe o que é, mas que irá acontecer. Sente que, se tivesse contado o segredo que conhece mais cedo, talvez o destino de todos fosse diferente. Ambos estão atormentados. E, no entanto, ainda ontem à noite os dois alimentavam esperanças de que as coisas se começassem a compor no casamento de Leonardo. Ainda ontem, a vida dele parecia prestes a terminar uma volta inteira sobre si própria, como se ele viajasse num cesto de uma roda gigante, que agora o trazia de volta ao ponto de felicidade original de onde partira.

Durante o voo para o Brasil, Rafael irá recordar o ciclo de vida daquele casamento: o mito da felicidade inicial, a festa fantástica na quinta de Constança, o nascimento dos filhos, as primeiras decepções e desavenças e depois a rotura, a separação, e aquela fuga imprevisível de Constança para o Brasil, com o seu novo amor; que deixou Leonardo a morrer de saudades dos filhos durante o ano inteiro de 2012. Um homem sem filhos é um homem amputado, e assim viveu Leonardo mais de trezentos dias. Era como se existisse nele aquela angústia antiga e milenar, perante a ausência dos filhos, que na história da humanidade fora quase sempre prerrogativa das mães. Hoje, também os pais sofrem disso, e ficam tão ou mais desesperados do que as mães, pois perderam a capacidade de imaginar o mundo sem os filhos, e nesse vazio nasce-lhes uma perturbação próxima da loucura, uma saudade trágica e doente, que os desequilibra.

Depois, de surpresa, nascera a reaproximação entre o casal. Nos últimos tempos, à medida que se aproximava o Natal de 2012, Constança mudara. Muitas vezes, é isso que concluiu Rafael, as mulheres veem a vida através dos olhos dos homens que amam. Enquanto ela amou João, o outro, o que a levou para o Brasil, para ela Leonardo era um traste, um patife, um crápula. Quando o outro a começou a abandonar, lá longe, no Brasil, logo o anterior amor, o marido (ou ex-marido?), recuperou as suas renovadas cores». In Domingos Amaral, Casamento de Sonho, Casa das Letras, 2014, ISBN 978-972-462-237-8.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Literatura,