quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A Casa do Pó. Fernando Campos. «A uma parte desta quadra fica uma pequena entrada, como a inicial. Por ali, dizia o homem, continuava o labirinto até ao mar, do outro lado do arquipélago... E incitava-nos a prosseguir a visita»

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O Breviário

«Estávamos nisto, chegámos a uma aldeia em que só encontrámos mulheres e crianças, muito espantadas e assustadas com o nosso aparecimento. Homens nem cheiro. Os caloiros, que eram conhecidos, entraram com elas à fala. Que era feito dos seus homens? Ah! Éramos nós! E elas que ouvindo vir gente pelo caminho em altas vozes pensaram serem corsários mouros! Era uma mulher ainda nova que falava, com o filhinho muito sujo ao colo.

Então foi por isso que os homens desapareceram? Os mouros, intervinha uma outra, o que queriam era homens que metessem a remos. Mulheres? Isso só se as fossem vender muito longe a terras do grão-turco!... Mas desse tinham eles medo por mor das cruéis justiças com que os mandava castigar. As mulheres, sendo novas, dizia a primeira, fazem aquilo que sabeis e não se importam mais com elas Pouco a pouco vinham-se chegando alguns dos homens que se haviam escondido e, corridos e envergonhados, procuravam dar-nos escusa da sua fugida da mesma maneira que as mulheres o tinham feito.

Que distância é daqui ao labirinto?, perguntou um dos nossos companheiros a um daqueles homens. Aí umas quatro milhas... Eu conheço muito bem o caminho, destacava-se um outro. E oferecia-se: Se quiserdes, irei convosco. Concertada a ida e assentada a hora da partida, fizemos uma breve refeição por ser altura disso. Despedimo-nos dos caloiros. Da nossa parte pedissem ao abade se dignasse mandar uns caloiros à nau para lhe enviarmos alguma caridade em recompensa da muita que nos fez no seu mosteiro.

Quase à hora de véspera chegámos ao sítio. Era junto de uma outra aldeia maior que a primeira. Apresentaram-nos um homem já de idade que costumava ser o guia, pagando-lhe seu trabalho. Tudo contado, pusemo-nos a caminho e breve chegámos à porta do labirinto. O guia, ajudado por um mancebo que vem com ele, retira duas grandes pedras da boca por onde havemos de entrar, que é uma espécie de porta de cova. Entram ambos adiante, cada um com seu morrão aceso na mão, e nós após eles, de pés e mãos porque a entrada é apertada. Caminhamos uma grande milha por debaixo de abóbadas e abóbadas feitas da mesma rocha, sem vermos nada de notável, salvo o intrincado das diversas estâncias e o soar por elas uma fortíssima ventania sem se atinar por onde possa entrar. Chegamos finalmente a uma quadra muito espaçosa. Na parede, uma argola de bronze, tão grossa que pesará um bom quintal. Fora ali, informa-nos o nosso guia - que estivera preso o monstro Minotauro.

A uma parte desta quadra fica uma pequena entrada, como a inicial. Por ali, dizia o homem, continuava o labirinto até ao mar, do outro lado do arquipélago... E incitava-nos a prosseguir a visita. Não!, adiantei-me eu, enfadado da fábula que tudo aquilo era e de não haver nada de notar. É jornada muito comprida e já é bastante tarde. O principal está visto e eu sinto-me extremamente cansado.

Todos concordaram e tornámos a sair por onde tínhamos entrado. Eram duas ou três horas de noite quando chegámos à aldeia. Repousámos junto de uma grande fogueira que a mulher do nosso guia tinha acendido, por falta de camas, porque naquelas aldeias é tudo miséria. Logo que amanheceu, seguimos caminho em direcção à nau. Mal chegámos perto do mar e fomos vistos de bordo, meteu-se o patrão num batel e veio-nos receber, com grande alegria de todos e, satisfazendo ao nosso guia e a seu companheiro, se despediram estes de nós contentes da paga. Mas quando entrávamos no batel para regressar à nau, o patrão, que com o olhar perscrutava miudamente o nosso grupo como a contar se estávamos todos, perguntou-me e a frei Zedilho: Não vistes vossos irmãos Pietro e Bertino? - Não. Porquê? Há dois dias me pediram licença para irem a terra e ainda não tornaram. julguei que se teriam juntado a vós. Não, não os vimos. Quereis que os procuremos? O ponto é esse. Procurá-los, onde?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,