domingo, 23 de outubro de 2011

César de Frias. A Afronta António Nobre. Parte IV. «Para mais, conspirando a favor dum logro, era esta a promessa ridente que à entrada de todos os caminhos, pelas mesmas palavras e em letras de palmo e meio pintadas nas mesmas álacres cores pelas tabuletas, acenava ao viandante recém-vindo. Fosse lá alguém saber qual dizia a verdade! …»


Cortesia de wikipedia 

O Poeta do SÓ
«Nascido no Porto, aos 16 de Agosto de 1867, António Nobre incrusta os seus dezasseis anos, idade genericamente desabrochante das energias pensantes e sensoriais do homem, e, no caso particular do Poeta, idade que se ajusta à data de publicação dos seus primeiros versos, num ambiente heterogéneo, tumultuoso, cortado de múltiplas e desencontradas exegeses filosóficas e estéticas.

Ia então por todo o mundo culto, irradiando dos empórios mentais e artísticos, um babélico “bra-á-á” de mil ritos diferentes, que atordoava os cérebros, arrepelava os nervos, elevava as sensibilidades às mais altas e esgotantes tensões. Tantos eram os Rabis, e tão aparentemente sábias e inspiradas as suas catequeses, e tão vistosos e louçãos os seus para mentos verbais, que a uma consciência moça e débil, ainda em formação, e, portanto, fácil presa de enganadoras sugestões, não se podia deparar como tarefa branda e leve o pronunciamento por esta ou por aquela seita, arrebanhando-se empós um ou outro pastor, batendo com os joelhos nas lajes dum mais próximo ou mais longínquo templo. E, assim, com mil veredas sulcando em sua frente os horizontes, quem resolvesse encetar os passos numa, ao acaso, decerto bem pálida e escassa luz de fé levaria a alumiar-lhos, visto as sebes de rosas das certezas e as paliçadas de espinhos das dúvidas, que ladeavam todas essas veredas filosóficas e estéticas, em nenhuma se apresentarem mais olorosas e polícromas ou mais acutilantes e hirsutas do que noutra, afirmando ou desmentindo ser a escolhida a que levava direitinho à Terra da Promissão da Arte.


Cortesia de wikipedia

Para mais, conspirando a favor dum logro, era esta a promessa ridente que à entrada de todos os caminhos, pelas mesmas palavras e em letras de palmo e meio pintadas nas mesmas álacres cores pelas tabuletas, acenava ao viandante recém-vindo. Fosse lá alguém saber qual dizia a verdade! …

Estavam, pois, convertidos em campos de feira os rincões do Pensamento e da Arte. As gentes, aos enxames, erravam de tenda para A Afronta a António Nobre tenda, provando, mercando, incaracterísticas, sem paladar certo. De quando em quando, os tendeiros, na exaltação ciumenta de seus elixires e panaceias, urravam entre si um dialecto bem pouco literário e digno das suas linhagens olímpicas. Chegaram por vezes a vias de facto, e como o barulho e a desordem atraíram em todo o sempre melhor do que falas e gestos mansos, a nuvem forasteira era cada vez mais espessa em redor dos gritantes mercadores.

Estava ali, talvez, o gérmen do que hoje se chama, o reclamo à americana…

Simbolismo, parnasianismo, reacções clássica e romântica, positivismo, satanismo, pessimismo, neo-idealismo, novos ímpetos da escola realista e outros fenómenos não menos de espantar, ia por ali uma confusão doida, poeirenta, cegante. E, claro está, que no horto da poesia, habitualmente remansoso, a barafunda não era menor. Nada escapara ao flagelo.

Menino e moço, abandonado por seu destino nesta encruzilhada, como nos velhos contos de fadas, e sentindo a sua alma palpitar e abrir as asas na ânsia irreprimível de atingir as mansões do Sonho, onde encontrasse doçura e perfeição a compensarem-no das misérias da vida terrena e vulgar que os seus olhos largos e reveladores iam já descortinando em volta, que resolução tomou António Nobre? Que vereda das mil que se lhe ofereciam o cativou mais? E em qual, por fim, decidido ou vacilante, abriu a marcha?

Em nenhuma. O seu orgulho enorme:

Orgulho
insupportavel tal o meu,…


Cortesia de wikipedia 

Peça saliente, peça-mestra do seu organismo moral, não lhe permitia seguir na esteira de alguém por qualquer desses caminhos, alguém que não visse de certeza ser maior do que ele próprio, alguém que o não soubesse enfeitiçar pela mágica força dum prestígio sobre-humano.

Não havendo ali pastor algum com os excelsos predicados, não se arrebanhou. Deixou partir nas várias direcções, para ali, para além, as longas caravanas dos outros poetas, e ficou-se, no meio da encruzilhada triste, orgulhoso e só. Então, palpando, adivinhando um drama dentro de si, concentrou-se, volveu os largos olhos da sua inteligência e da sua sensibilidade para o próprio interior. Nesse ensimesmamento, não mais descansou enquanto, de entre os meandros nebulosos do mundo da sua alma, ainda na confusão dos dias do génesis, não conseguiu aperceber bem e arrancar esse drama, inteiro, ingente e convulso, para o pôr sob a bátega forte e iluminadora do seu génio poético.

Embora solitário, ermo de viventes companhias, alguém, contudo, o ia às noites, horas mortas, acarinhar. Era uma ronda de sombras, de sombras que a sua simpatia iluminava santificadoramente, e que, à sua voz de devoto e místico chamamento, acorriam a inspirá-lo, tutelando sua obstinada pesquisa:

Sou médio, evoco-os, noite em meio,
Vós não acreditaes, eu sei-o…
Deixai-o não acreditar.

Mas, que sombras seriam essas que o visitavam, noite velha? De que fantasmas a sua bruxa evocação fazia desenhar no ar caliginoso os vultos diáfanos? À' frente, vindo de muito longe, no tempo e no espaço, Shakespeare, o rival dos deuses, o portentoso criador de almas, cujas referências são bastas na obra de Anto, como:

Ó Bancuos do remorso! Ó rainhas Machebetts
Da ambição! Ó Reis Leais da loucura! Ó Hamlets
Da minha vingança! Ó Ophelias do perdão..

Nos “Males de Anto” e ainda no final da mesma poesia

Mas uma coiza que lhe faz ainda peior,
Que o faz saltar e lhe enche a testa de suor,
É um grande livro que elle traz sempre comsigo
E nunca o larga: diz que é o seu melhor amigo,
E lê, lê, chama-me «Carlota, anda ouvir!
Mas… nada oiço. Diz que é o Sr. Shakespeare.

In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.

(Continua)
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT