segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Silva de Azevedo. O Príncipe Sem Coroa: «Fautor, depois de Deus, da mudança cosmorâmica mais radical que se conhece, seria para o mundo quase um mito, quase um anónimo, se íntimos da sua grei não ciciassem, como numa prece, de tempos em tempos. “Infante D. Henrique!»

Cortesia de enwikipedia

Um vulto dentro do nevoeiro
«Representai-vos de regresso à Europa, a bordo dum transatlântico. Imaginai-vos nas imediações marinhas do cabo de S. Vicente, em manhã que, apesar de neblina, possui a luminosidade leitosa da porcelana. Por entre a salsugem das vagas, lá podereis ver ao longe, negrejar, o promontório, como vago dragão que dorme, estirado na restinga. Vós chegastes de remotos climas, onde farfalham palmares de mistério e se desdobram cidades alvejantes ao sol tropical, florindo pelas praias, com pétalas de casario recente. Ainda trazeis nos ouvidos o repicar dum sino, entalado na órbita duma igreja centenária, aconchegada à raiz duma fortaleza histórica. Cruzastes com muitas quilhas abarrotadas de milhões. Sondastes os céus, ao sentirdes o arfar das aeronaves meteóricas, nesse vaivém da traficância internacional dos novos mundos.
E no entanto...
Quem teria provocado um lapso de centúrias, tão revolucionária metamorfose deste globo que tem centenas de milhentos de anos?
Como, quando e porquê?

Insensivelmente, os vossos olhos desfilarão a mancha escura do horizonte rasteiro. Através da gaza de névoas, eles hão-de lobrigar na fantasia uma silhueta encarvoada, indecisa, gigantesca. Os pés desmesurados são penhascos chantados na base de Sagres; o tronco maciço, o recorte dum Himalaia; o chapeirão, com seu resguardo pendente, um cúmulos a diluir-se no espaço.

Cortesia de claustrodaana 

Não, não é um Adamastor de ficção.
Nem é propriamente um enigma.
Mas ninguém até hoje conseguiu arrancá-lo em definitivo ao nevoento cortinado. Nem arrancar-lhe frases de legenda. Nem desenhá-lo por inteiro. De qualquer ângulo da terra ou do mar que se esquadrilhe o seu vulto, de lá se alcança. Presente a tudo, o grande Ausente! Arquitecto ímpar da monumental História da Civilização, tem permitido sucessivas edições, sem cobrar direitos. Fautor, depois de Deus, da mudança cosmorâmica mais radical que se conhece, seria para o mundo quase um mito, quase um anónimo, se íntimos da sua grei não ciciassem, como numa prece, de tempos em tempos: Infante D. Henrique!
A tomada de Constantinopla, em 1453, tem sido considerada o impacto mais poderoso que sacudiu a Europa inteira, desde o rosicler alvissareiro das primeiras notícias do Evangelho. Ao menos, os historiadores assim o vêm repetindo. Logo veremos, contudo, se também foi o mais decisivo na reviravolta subsequente, como pretendem alguns.

À falência melancólica do Império Romano do Ocidente seguira-se a assimilação laboriosa da maré alta dos bárbaros invasores. A doutrinação fora relativamente rápida. A economia da Providência fizera assim germinar e amadurecer runa nova sociedade, na qual a “Civitas Dei” urbanizou, dia a dia, uma generalizada Civilização Ocidental.

Cortesia de lagash

A experiência especulativa dos Gregos e o pragmatismo empírico dos Romanos franquearam as estradas do Mundo à marcha triunfal do Cristianismo. Longe de ter sido a época «tenebrosa», como os «iluminados» de muitas seitas “et caterva” a acoimarem, a Idade Média foi uma radiosa madrugada de esplêndidas iniciativas: mosteiros, hospitais, escolas monacais, ordens mendicantes, catedrais, universidades, ordens de cavalaria, cruzadas, poesia trovadoresca, novelas de sonho.
O mosaico de reinos e senhorios feudais pontilhava de vilas e castelos, as encostas e os outeiros num equilíbrio social mais ou menos estabilizado. A transfusão do sangue nórdico nos povoados indígenas ou romanizados rebentava em searas de raças revitalizadas. À robustez corporal acrescia a solidez dum misticismo ardente, que arvorava a Cruz em todas as grimpas e em todos os lares. Era a “Pax Chtistiana”.
Entrementes, não muito distante, um monstro crescera e rondava em incursões inquietadoras. Fizera-se atrevido e audaciosamente voraz. O Islão.

Subitamente, o estrondear da derrocada bizantina repercutiu de lés a lés, por toda a Europa! Torres e castelos, muralhas e burgos pareceram estremecer até às raízes. Também tombou, afinal, e com inédito fragor, o Império do Oriente, o seguro baluarte que durante mil anos aparara todas as ressacas das fúrias de Leste. O mundo ocidental e cristão ficava à mercê do seu mais figadal inimigo, o Crescente de Mafamede! Cortaram-se de vez as rotas do Oriente; interpunha-se a muralha de alfanges, prenúncio da actual cortina de ferro. Pior: amputara-se a nossa ponta-de-lança, ofensiva e defensiva, que fora Bizâncio. Em seu lugar abaulava-se um arco triunfal, como convite à arrancada avassaladora do rolo compressor otomano». In Silva de Azevedo, O Príncipe Sem Coroa, Pontifícia Universidade de S. Paulo, Bertrand Irmãos, Lisboa, 1963.

Cortesia de Bertrand Irmãos/JDACT