segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Silvina Rodrigues Lopes. Ruy Belo. Como quem num dia de Verão abre a porta de casa: «… nenhuma palavra, nenhum livro, pode dizer o mundo, pois há sempre para cada homem de palavra(s) outra palavra, ou a mesma tornada outra por uma nova vizinhança, uma nova articulação, um novo fôlego, um novo jogo, para dizer de novo…»

Cortesia de bibliotecadanazare

Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
«Ironia e Verdade são as noções inseparáveis que suportam e orientam a leitura de Ruy Belo aqui proposta - ironia das ficções que se fazem e desfazem, verdade instaurada nesse fazer-desfazer, nos intervalos em que uma necessidade emerge não como harmonia e perfeição correspondente a uma finitude das coisas, mas como necessidade de continuar desfazendo e refazendo. Continuar, porém, numa contiguidade que diverge, não como o noivo que, feliz, recita os versos de Cesário Verde «Se eu não morresse nunca e eternamente / buscasse e conseguisse a perfeiçáo das coisas?» (em «Estudo» de Homem de Palavra[s]), mas com quem ao recitá-los neles sublinha o antagonismo entre a permanência do eu e a busca ou desejo como impulso que se sustenta da sua própria realização. Eternamente buscar e conseguir é sempre já renascer diferente, é sempre mudar: o eterno retorno como espaço-tempo do «próprio» enquanto mudança, isto é, enquanto dizer sempre já ex-apropriado pela linguagem, e que, como tal, dá sempre de novo às coisas (e ao eu como uma coisa) o seu lugar entre o espaço e o tempo da continuidade intersubjectiva (formas que constituem a história do mundo e dos indivíduos) e o vazio de que ele se origina. A finitude é o preço a pagar pela alegria de não haver fim, alegria do Verão, da linguagem na sua única estação, a da poesia, que, como o título deste ensaio (um verso de Alberto Caeiro) pretende sugerir, se assemelha a um gesto quotidiano de abertura. Do entendimento disso decorre o entendimento das relações linguagem-mundo como não-causais, isto é, não determinadas por qualquer automatismo, não-subsumíveis num “telos”. Que o mundo não é uma construção da linguagem é o que o processo de limitação e abertura que caracteriza toda a exposição do mundo evidencia:
  • nenhuma palavra, nenhum livro, pode dizer o mundo, pois há sempre para cada homem de palavra(s) outra palavra, ou a mesma tornada outra por uma nova vizinhança, uma nova articulação, um novo fôlego, um novo jogo, para dizer de novo a perfeição-sem-fim (imperfeição) das coisas e das relações. Esse jogo, porém, decorre de as construções da linguagem, ao mesmo tempo que colocam limites ao que é possível dizer-se, poderem ser ilimitação, abertura para fora do possível.

Cortesia de galeriadecr

Pondo de parte a hipótese de uma transcendência que comande em absoluto as combinatórias de signos linguísticos, fixando-lhes um sentido, e a hipótese de um “telos” imanente à linguagem (a gramática como única dimensão dela) põe-se consequentemente de parte quer o uso da linguagem como busca de sentido quer a auto-referencialidade sem resto das combinatórias de linguagem. O que implica que se considere a interrupção do processo auto-reflexivo pela intervenção nesse processo da força diferenciadora do fora, que permite a significação enquanto ausência de garantia de um sentido.

Admitir que um texto existe na relação com outros textos, ou com todos os textos existentes, diz ainda respeito à dimensão do círculo auto-reflexivo e não à sua interrupção. Esta, o modo como o fora de texto irrompe no texto perturbando a sua completa estabilidade, não é localizável nem na sua letra nem numa esfera de conceitos ou ideias, pertencendo sim à composição que o poema é na sua unidade (mas não totalidade) irrecusável. É assim o espaço-tempo do fazer, do escrever, que se inscreve no jogo diferencial ou potencial de ressonância, que é a composição. O fora do texto como causa é então indiscernível da significância. Os elementos disponíveis que constituem os materiais a combinar existem no poema retirando-se do seu uso, dos textos e contextos «naturais», aqueles que os ligam sem equívoco a imagens, conceitos e ideias, num processo que, atendendo ao que ali se oblitera (sonoridades, grafias, não-linearidade da inscrição), desencadeia o jogo de relações que é condição de contínua metamorfose, a qual diz a impossibilidade de haver coisas em si ou palavras em si.

Cortesia de aminhasintra

Ruy Belo refere este processo de composição em «Os Fingimentos da Poesia», onde diz:
  • «Arranca esse senhor [o poeta] à linguagem quotidiana aquelas palavras que lhe faltavam para fechar um poema. Como é que lá chega? Pegando naquilo que vê, pensa ou sente e sacrificando-o ao fio da sua meditação. Despreza aquele conjunto de circunstâncias que rodeavam a palavra e dá nova arrumação à palavra liberta. Tanto faz que se fale de desumanização, como de falsidade, como de fingimento».
Ao lermos Ruy Belo, percebemos como o dar «nova arrumação» é constitutivo dessa poesia que recorrendo frequentemente à citação de expressões vindas de textos poéticos, ou do quotidiano, as desvia da dose de circunstâncias que inevitavelmente as impregnam. Daí um efeito de continuidade entre várias maneiras de pensar/fazer a poesia, que se apresenta como captação de passagens entre processos e estilos. Ao lado de alguns poemas breves, a tradição de poemas longos renasce em Ruy Belo separando-se da imanência impessoal da épica, da transcendência bíblica e da subjectividade romântica. A extensão do poema é então ditada pela necessidade de continuar, uma necessidade que, decorrendo da inesgotabilidade do que pode ser dito, não é a de um infinito da inspiração ou da força interior mas, pelo contrário, a da inapresentabilidade da verdade, que o poema sustenta, desejando, através das «falsas pistas» (ver o poema «Estudo» ,in “Homem de Palavra[s]”) que constrói, sempre variáveis, pois é sempre outro o espaço-tempo do escrever que se inscreve no poema ao ser por ele «ex-crito». A necessidade de continuar é então a exigência fundamental do «labor» poético, aquilo que o devia de qualquer finalidade: a inesgotabilidade do mundo (a casa da poesia) pelo decurso do tempo e do consequente fluxo de memórias-metamorfoses obriga só por si a uma permanente reescrita - espécie de auto-correcção permanente, em que a disseminação de novas pistas compõe o jogo da verdade, no qual a interrogação «o que é a verdade?» pode tomar parte, mas nunca a resposta que a limitaria ou converteria numa pista falsa, sincera ou insincera, tanto faz - porque ela mesma é construída no processo de limitação-abertura que o mundo é. As associações de sonoridades e os vários tipos de semelhanças e dissemelhanças exaustivamente postos em jogo são outro modo (mais vertical e vertiginoso) de fuga à totalidade (ao mundo como totalidade, consenso, regra), expondo também ele a equivocidade, através da sobreposição de rumores próximos e distantes». In Silvina Rodrigues Lopes, Ruy Belo, Como quem num dia de Verão abre a porta de casa, Fundação Calouste Gulbenkian, Colóquio Letras, ISBN 010-1451.

Cortesia FCGulbenkian/JDACT