quinta-feira, 10 de maio de 2012

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XVI. Ceuta. «O tempo a tal estado me chegou e nelle quis que a vida se acabasse, se ha em mim acabar-se, o que não creio, que até da muita vida me receio. Além da vida alegre que passava, pois nas que se perdiam não perdia, e das que vinham salvas se alegrava»


Cortesia de wikipedia

Os outros, "os que não têm baixa a fantasia", só podem evitar os golpes da Fortuna, achando-se num estado semelhante ao de Trasiláo

De um certo Trasiláo se lê e escreve.
Entre as cousas da velha antiguidade,
Que perdido grão tempo o siso teve,
Por causa d'uma grave infermidade.
E, emquanto de si fora doudo esteve,
Tinha por teima e cria por verdade
Que eram suas, das naus que navegavam,
Quantas no porto Pireu ancoravam.

Por um senhor mui grande se teria,
Além da vida alegre que passava,
Pois nas que se perdiam não perdia,
E das que vinham salvas se alegrava.
Não tardou muito tempo quando um dia
Um grito, seu irmão, que ausente estava,
À terra chega, e, vendo o irmão perdido,
Do fraternal amor foi commovido.

Aos médicos o entrega e com aviso
O faz estar á cura refusada.
Triste! que, por tomar-lhe o antigo siso,
Lhe tira a doce vida descansada.
As hervas Apollineas de improviso
O tornam á saúde já passada.
Sisudo, Trasiláo ao caro irmão
Agradece a vontade, a obra não.

Porque, despois de ver-se no perigo
Do trabalho a que o siso o obrigava,
E despois de não ver o estado antigo,
Que a louca presumpção lhe apresentava,
— Oh inimigo irmão, com cor de amigo,
Para que me tiraste (suspirava)
Da mais quieta vida e livre em tudo,
Que nunca pôde ter nenhum sisudo?

Por qual senhor algum eu me trocara,
Ou por qual algum rei de mais grandeza?
Que me dava que o mundo se acabara,
Ou que a ordem mudasse a natureza?
Agora me é penosa a vida cara;
Sei que cousa é trabalho e que é tristeza.
Torna-me a meu estado, que eu te aviso
Que na doudice só consiste o siso. —

E o poeta prossegue:

Vedes aqui, senhor, bem claramente
Como a Fortuna em todos tem poder,
Senão só no que menos sabe e sente,
Em quem nenhum desejo pode haver.
Este se pode rir da cega gente;
Neste não pode nada acontecer;
Nem estará suspenso da balança
Do temor mau, da pérfida esperança.

Vamos agora entrar na parte capital da epístola. Qual dos dois meios de escapar aos golpes da Fortuna prefere o poeta?
Dadas certas condições, não pediria:

Do insano Trasiláo o doudo estado.

E essas condições são as seguintes: Ver terminado o exilio; viver modestamente, entregue às musas; cultivar a amizade da pessoa a quem a epístola é endereçada; deliciar-se com as obras de determinados poetas e, finalmente, se não principalmente, ter ao pé de si “a menina dos olhos verdes”.

Mas, se o sereno ceu me concedera
Qualquer quieto, humilde e doce estado,
Onde com minhas musas só vivera,
Sem ver-me em terra alhea degradado;
E alli outrem ninguém me conhecera,
Nem eu conhecera outrem mais honrado,
Senão a vós, também como eu contente,
Que bem sei que o serieis facilmente;

E ao longo duma clara e pura fonte,
Que, em borbulhas nascendo, convidasse
Ao doce passarinho, que nos conte
Quem da cara consorte o apartasse,
Despois, cobrindo a neve o verde monte,
Ao gasalhado o trio nos levasse,
Avivando o juizo ao doce estudo,
Mais certo manjar da alma emfim que tudo.

Cantára-nos aquelle, que tão claro
O fez o fogo da arvore Phebêa,
A qual elle em estylo grande e raro
Louvando, o crystallino Sorga enfrêa;
Tangera-nos na frauta Sanazaro,
Ora nos montes, ora por a arêa;
Passara, celebrando o Tejo ufano,
O doce e brando Lasso castelhano;


E comnosco também se achara aquella,
Cuja lembrança e cujo claro gesto
Na alma somente vejo, porque nella
Está em essência puro e manifesto,
Por alta influição de minha estrella,
Mitigando o rigor do peito honesto,
Entretecendo rosas nos cabellos,
De que tomasse a luz o sol em vê-los;

E, emquanto por verão flores colhesse.
Ou por inverno, ao fogo accommodado,
O que de mi sentira nos dissesse,
De puro amor o peito salteado,
— Não pedira eu então que Amor me desse
Do insano Trasiláo o doudo estado,
Mas que alli me dobrasse o intendimento,
Por ter de tanto bem conhecimento.

Esboçado, porém, este programa, o poeta pergunta:

Mas por onde me leva a phantasia?
Porque imagino em bem-aventuranças,
Se tão longe a Fortuna me desvia.
Que inda me não consente as esperanças?
Se um novo pensamento Amor me cria,
Onde o lugar, o tempo, as esquivanças,
Do bem me fazem tão desamparado,
Que não pôde ser mais que imaginado?

E Camões, depois de se queixar da Fortuna e do Amor, que contra ele se conjuraram, conclui por esta forma:

O tempo a tal estado me chegou
E nelle quis que a vida se acabasse,
Se ha em mim acabar-se, o que não creio,
Que até da muita vida me receio.

Foram também escritas nesta fase as seguintes redondilhas, tão repassadas de resignada melancolia (145)».
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/ JDACT