domingo, 6 de maio de 2012

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «Essas emendas e acrescentos relativos ao Infante Henrique, no capítulo 27, podem ver-se em “As Variantes das Crónicas” e vão desde o estilo tornado mais palaciano, até a forma como fala do grande nevão caído sobre Lisboa nesse dia 31 de Janeiro, o do seu nascimento…»



jdact

Carta-prefácio
«Que o Cardeal Infante era sincero mostra-o seu procedimento posterior, durante trinta anos. Tanto assim que o único dano provindo a Damião de Goes das denúncias de Simão Rodrigues parecia ter sido a perda do preceptorado do príncipe João. Nomeado foi António Pinheiro, futuro bispo de Miranda, homem palaciano, de boa eloquência e falas amáveis, erudito e sabendo ladear complicações, a ponto de, sendo cronista-mor do Reino, ter evitado escrever as crónicas de Manuel I e de João II a despeito do empenho nisso posto pela Rainha, pelo Cardeal e pelo próprio rei Sebastião.
As relações dele com Damião de Goes não parecem ter sido ostensivamente más, mas António Baião acentua a diversidade de temperamento entre os dois, e as dificuldades postas na Torre do Tombo ao fornecimento de documentos para o bispo de Miranda se desempenhar do encargo de cronista de João III, e daí o deduzir também a «medida, quase cheia com o capítulo da crónica, transbordou com os queixumes, com as intrigas do bispo Pinheiro, persona grata à Inquisição (maldita) e, provavelmente, sabedora de muitos dos seus segredos». Goes também contara que o bispo se escusara da Crónica de Manuel I ‘ou por ser mais inclinado a outros estudos ou por ter o trabalho por grande’.
Não tomara o cardeal inquisidor em conta as denúncias contra Damião de Goes. Tanto assim que o solicitou a realizar a Crónica de seu pai, em 1558. O cronista trabalhou intensamente nela e aprontava-a em 1566, levantando ventos. O trabalho envelheceu-o e já Auguste Castam, quando, em 1565, veio a Portugal com o conde Charles de Mansfelt, por motivo do casamento de Alexandre Farnesio com a Infanta D. Maria, nota na sua memória: ‘il se faict fort vieulx’!
Junto do Cardeal Infante, também regente do Reino, Damião de Goes continuava a ter o mesmo crédito; e até depois de publicada a crónica pareceu que Sua Alteza fora superior às intrigas, aos clamores e, mais ainda, às susceptibilidades pessoais, não levando sequer em conta o não ter sido enaltecida bastante sua pessoa. Com efeito, na carta, já citada, da Rainha reduzindo a metade o empréstimo pedido pelo cronista, se diz também:
  • ‘Vi os capítulos que me enviastes assi o que fala no cardeal infante meu tio, como o que toca às coisas d'El Rei Dom Fernando. No do cardeal mandei emendar o que vereis, e no d'El-Rei Dom Fernando mudar o que também vereis pelo caderno que com esta vai, conforme ao qual o fareis lançar em seu lugar’.
Essas emendas e acrescentos relativos ao Infante Henrique, no capítulo 27, podem ver-se em “As Variantes das Crónicas” e vão desde o estilo tornado mais palaciano, até a forma como fala do grande nevão caído sobre Lisboa nesse dia 31 de Janeiro, o do seu nascimento, à sua actividade de Inquisidor (maldito). Foi esse capítulo engrossado para mais do dobro.
Acentuemos também que emendas houve concertadas e comunicadas ‘com o bispo’. Provavelmente António Pinheiro, que não se arriscara a escrever as crónicas, mas tomava parte nas mutilações e acrescentos, recolhendo aplausos e agrados! A sobriedade de Goes não agradava.
Sabido como é ser Henrique Cardeal muito sensível à lisonja, a sua estima por Damião de Goes deverá ter sofrido grande abalo a despeito das mercês de que o acumulou ao ser publicada a obra, mas antes de lida e criticada, nesse mesmo ano de 1566: em 28 de Janeiro recebia a tença de 20 reais e o hábito de Cristo; em Junho recebia o foro que se pagava à Fazenda Real das terras do Magalhães, perto de Beja, mercê que se prolongaria por via de sua mulher Joana de Hargen. Depois, por morte de ambos, passaria a sua filha Isabel de Goes. Em Novembro, a 18, o lugar de guarda-mor da Torre do Tombo, em sobrevivência, a Ambrósio de Goes, por morte de seu pai A 6 de Fevereiro recebera a mercê de poder mandar vir do Oriente mercadorias defesas de forma a tirar para si o lucro de dois mil cruzados, nesse ano de 1566». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT