domingo, 6 de maio de 2012

A Mocidade de D. João V. Luís Rebello da Silva. «Os dois eruditos, admirando-se, mal puderam conter o riso contagioso. O abade achando na idade de Lourenço Telles a sátira das suas incorrigíveis elegâncias; o comendador colhendo em flagrante sob a cor de lagosta das segundas meias, e o quase escândalo dos calções funis, a tíbia aflautada e a coxa diminuta do venerando crítico»



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In Memoriam de MLAC

A Mocidade de D. João V
Todos falam, e poucos entendem
«Faltavam vinte minutos para a uma hora da tarde, hora improrrogável marcada por Lourenço Telles aos comensais que tinha convidado. O erudito saía do seu quarto, viçoso como a Primavera, menos na frescura do rosto, cujas rugas contumazes pareciam o eterno cartaz dos anos. A preciosa renda dos punhos e da tira nada tinha a invejar na alva finura ás riquíssimas valencianas das duquesas do grande século. Os bordados e recamos da vestia de cetim azul celeste podiam sair do bastidor em que se lavraram os ramos de flores com que se enfeitou, em gala real, o peito de Luiz XIV, quando no orgulho de mancebo e de monarca escolhia o sol para divisa do seu esplendor. O feitio francês, a elegância do corte e da costura, a profusão das jóias e a magnificência do estofo, faziam de Lourenço Telles o réu de lesa-pragmática mais público e impenitente, não havendo um só artigo das severas leis económicas de Pedro II, que o seu trajo não deixasse de infringir.
Encontrando-o, Vattean dar-lhe-ia a imortalidade do seu pincel espirituoso. As damas mais caprichosas teriam de confessar com dor a primazia das essências usadas por ele nas roupas e no penteado. Frisada em canudos simétricos, a cabeleira, com as bolsas apanhadas em nós de fita cor de rosa, chamados laços de amor, caía com artificiosa graça, lambendo a testa, e acompanhando as faces.
Os sinetes de rubis dos dois relógios, os botões de brilhantes dos punhos, e a espiguilha admirável da gravata, fariam empalidecer de inveja qualquer dos fidalgos moços e presumidos da roda do príncipe real. Finalmente o espadim de copos cravejados e bainha de veludo bordado, apresentava uma folha de Toledo, que o capitão Jerónimo quereria ver montada com menos riqueza, e mais segurança, achando-a capaz de defender o coração de um soldado.
Apenas chegou ao escritório, revestido das maneiras corteses da escola de outro tempo, o comendador deu com os olhos no abade Silva, de pé, em hábitos maiores, entretido a folhear um livro, sem se esquecer de extasiar os olhos na ocasião própria. Regulando-se pelo exemplo do seu douto amigo, o autor das façanhas de Viriato não omitira uma só das preciosidades do guarda-roupa ou museu doméstico. Era uma verdadeira tabuleta de antiguidades. A meia de seda preta mostrava um lavor aberto, que mal interceptava o roxo claro da segunda meia unida á pele. O calção, laçado por cima do joelho e recamado nas costuras, estava tão justo, que deixava recear algum desastre. Nas fivelas dos sapatos brilhavam pedras de valor. À volta do pescoço formava um arabesco serpentino; os cinco sinetes pendentes de esdrúxulas cadeias assemelhavam-se ás numerosas correntes de um lampadário. Curta e de requifes, a capa ouriçada de folhos na murça, com guarnições de vidrilhos pretos, dava-lhe a aparência suspeita de um toureador castelhano. Sobre tudo a prodigalidade de estupendos camafeus que semeara com ostentação, e os desusados anéis romanos, egípcios ou hebreus que metera em todos os dedos, compunham uma panóplia singular dentro da qual esticava comprimido, mas sempre solene, sentencioso e engomado, o delicioso inventor do livro dos pavões!
Os dois eruditos, admirando-se, mal puderam conter o riso contagioso. O abade achando na idade de Lourenço Telles a sátira das suas incorrigíveis elegâncias; o comendador colhendo em flagrante sob a cor de lagosta das segundas meias, e o quase escândalo dos calções funis, a tíbia aflautada e a coxa diminuta do venerando crítico. O tio de Filipe da Gama, à parte a justa modéstia, reputando-se menos seco e muito mais vistoso, dava interiormente a si mesmo os parabéns por conservar todas as suas perfeições, opróbrio do Aristarco eclesiástico!
Jasmin, seguindo seu amo, tomou conta do tricórnio de borlas verdes e torçal de ouro do comendador das barbas históricas, recebendo ao mesmo tempo de suas mãos uma bengala, cujo castão raríssimo (dizia ele) não conhecia rival em toda a Europa, sendo a autêntica e vera taça egípcia em que a formosa Cleópatra bebera as pérolas desfeitas no banquete de Marco António. Na realidade o feitio não desmentia a versão. O que quer que era, que o abade chamava taça, tinha uma tampa de lavores, e abrindo -se patenteava certa cavidade, aonde o latinista incrédulo observou que se poderiam acomodar até seis pastilhas contra a tosse. O peso e as dimensões deste monumento mais o classificavam entre as clavas ou maçãs de armas, do que entre os canónicos e pacíficos bastões de uma coluna da igreja doutoral (8)». In A Mocidade de D. João V, Luís Augusto Rebello da Silva, Obras Completas, PQ 9261, R4M58, 1907, Volume 4, Library University Of Toronto, Setembro 1967, Empresa da História de Portugal, Livraria Moderna, 1907.

 
Cortesia de Livraria Moderna/JDACT