sábado, 12 de maio de 2012

A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577). As suas Damas. Carolina Michaëlis. «…de um lado a austeridade dos costumes e o rigor do regime repressivo que vigorava no paço real, e do outro lado a liberdade e o esplendor mundano da Infanta, pintam João III e a Rainha D. Catarina como completamente faltos de inteligência e saber, sombrios…»



jdact

NOTA: Texto na versão original.

A Infanta D. Maria
«E agora, que sabemos dos estudos e passatempos da filha de D. Manoel? das artes que cultivou? dos lavores de sua mão? do viver no seu paço? do circulo de damas nobres e donzellas eruditas que constituiam a sua côrte e imitavam o seu exemplo? dos poetas e sabios, seus protegidos? das obras que lhe foram dedicadas ou de que foi inspiradora? dos institutos de educação que fomentou?

Mais alguma coisa, felizmente, do que da famigerada “Escola de Sagres”, embora as notas soltas que foi preciso colher em muitas e diversas obras, nem mesmo a este respeito elucidem quanto seria para desejar.
Os coevos pintaram a sua casa como domicilio das Musas e universidade feminina, já o deixei dito a principio deste estudo. O biographo e os auctores feministas dos seculos XVII e XVIII forçam a nota, desenhando-a antes como um mosteiro reformado que podia a religiosas ser espelho e doutrina de bem-viver. Os modernos que se occupam de sciencias, artes e letras, seguem o exemplo do phantasioso polygrapho Manuel de Faria Sousa, e consideram o seu pequeno reino litterario como verdadeira corte de amor e gaia sciencia, comquanto, não podendo contradizer em absoluto os antecessores e para afugentar sombras, medos e horrores feministas, também ajuntem sempre, à cautela e com justo motivo, ao titulo de “Academia da Infanta” o subtitulo: escola de virtudes e honestidade.
Só estes fallam de “Serões da Infanta”, dando por provado que toda a pleiada camoniana se reunia constantemente em volta de D. Maria, no paço independente onde os monarcas a haviam instalado, mal chegou a completar dezaseis annos. Segundo eles, foi ahi em uma constellação de intelligentissimas bellezas que o cantor dos Lusiadas encontrou as suas Tagides, e se desenrolaram parte das desgraças e venturas da sua juventude, assim como outros successos notorios, alegres e tristes, da vida amorosa de vates palacianos. O intuito artistico de altear a estatua da Infanta, de fazer della a personificação feminina mais brilhante da cultura classica, e de pôr em contraste os seus dotes liberaes com o obscurantismo dos protectores da Inquisição (maldita) e do Jesuitismo, levou-os a proceder com alguma arbitrariedade. Exagerando, e muito, de um lado a austeridade dos costumes e o rigor do regimen repressivo que vigorava no paço real, e do outro lado a liberdade e o esplendor mundano da Infanta, pintam João III e a Rainha D. Catharina como completamente faltos de intelligencia e saber, sombrios, antagonicos às artes e a divertimentos, gastando os seus dias em novenas, ladainhas e autos da fé; e transformam a Infanta que na verdade foi mais seria do que graciosa, mais erudita do que artista, e devota como os reinantes, de formosa Pallas-Atheneia em jucunda Venus, ou Musagete feminina. Tentarei restabelecer a verdade, que fica, a meu vêr a meio-caminho, como de costume.

“Os Estudos da Infanta”.- É thema não menos controvertido do que o dos “Serões”.
Segundo uns, D. Maria de Portugal fôra de uma precocidade e intelligencia pasmosa. Lições de mestres e leituras proprias haviam-lhe aberto um horizonte amplissimo. Todos os auctores classicos lhe eram familiares. Quasi brincando penetrara os mais reconditos segredos da erudição. Fallava e escrevia a lingua latina perfeitamente bem, não só com fluencia e correcção, mas até com graça e singular elegancia, tal qual sua lingua materna, como se todo o mundo, então e sempre, soubesse bem a sua lingua materna! Em segredo, muito em segredo, redigia obras volumosas nos dois idiomas mortos. Do seu enthusiasmo pela litteratura patria dava provas diarias, estimulando e recompensando a actividade dos melhores auctores.
Segundo outros, que já conhecemos, foi apenas para poder rezar com entendimento os officios divinos que se dedicara ao estudo. Os volumes manuseados dia e noite, eram a Escritura e outros textos sacros. Assim o havia declarado, em vida da Infanta, a voz apparentemente auctorisada de um varão esclarecido, o verídico auctor das “Decadas”.
Quem terá razão? Não a dou a João de Barros, que sempre foi fraco erasmista, mesmo no tratado da “Mercadoria Espiritual”, porque depois de l550 o douto escritor fez-se porta voz da orthodoxa reacção tridentina. Na propria peça rhetorica a que alludo, um extenso Panegyrico das qualidades da Infanta, vemos desmentida a tendenciosa insinuação: tão variado é o saber que presuppõe; tantas são as allusões mythologicas, historicas e linguisticas, tantas as hyperboles com que a festeja. Identificando a era da Infanta com a idade aurea, e as suas damas e donzellas com a nova geração dos Übermenschen (“Sobre-homens ou Supra-homens”), profetizada pela sibylla, adianta-se mesmo até aplicar-lhe os versos de Vergilio:

jam redit et virgo; redeunt saturnia regna;
jam nova progénies coelodimittitur alto.

Não é, porém, nestes exageros que devemos fiar-nos, mas sim na consentanëidade de outros coevos mais sabios e menos rigoristas, que gabaram com insistencia o caracter, o bom-senso, os sólidos conhecimentos da Infanta». 
In Carolina Michaelis de Vasconcelos, Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.

Cortesia de Biblioteca Nacional/JDACT