terça-feira, 10 de julho de 2012

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «As noções de pecado e filantropia, de civilizado, bárbaro e selvagem, de liberdade e igualdade, de utilidade, bem social e progresso, estão presentes, nem sempre de uma forma coerente, em toda a problemática cultural gerada em tomo do processo escravista»


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«O estudo da escravidão é um filão inesgotável que reflecte não apenas uma condição, mas a caracterização de toda a sociedade que a adopta, de acordo com a maneira como a pensa e pratica. Não é apenas o estudo do homem escravizado que está em causa, mas também o estudo do homem livre numa sociedade de escravos. É ainda, na Época Moderna, o reflexo dos confrontos civilizacionais e dos choques culturais que os descobrimentos permitiram, das especulações de ordem racial que marcaram desigualdades e estabeleceram critérios de superioridade e inferioridade. É evidente que se estabeleceu uma relação entre a escravidão e os preconceitos raciais e este aspecto merece igualmente ser realçado. Ao longo do tempo verifica-se uma influência e um reforço mútuo destes dois elementos a que as concepções antropológicas dos séculos XVIII e XIX emprestaram a sua força. É um facto que também existia segregação social na ’sociedade livre’, mas a situação assume outras proporções quando lhe é associada a barreira da cor. Condorcet tinha razão quando, ironicamente, propunha que se acrescentasse à “Declaração dos Direitos do Homem”, uma simples palavra - Brancos:
  • Tous les hommes blancs naissent libres et égaux en droits; donner une méthode pour déterminer le degré de blancheur nécessaire!
Ao nível das formulações do pensamento, o estudo da escravidão revela-se de uma envergadura extraordinária. Os critérios de definição de uma ‘justa’ causa da escravidão, de um ‘justo’ comércio negreiro, das prerrogativas naturais do indivíduo, o âmbito e as limitações do direito de propriedade, do direito do vencedor, do direito de dispor de si próprio ou da liberdade dos outros, da soberania do poder legislativo regulador do maior bem ou menor mal da sociedade, eram fortemente invocados e habilmente equacionados em justificações de teor escravista e abolicionista. As noções de pecado e filantropia, de civilizado, bárbaro e selvagem, de liberdade e igualdade, de utilidade, bem social e progresso, estão presentes, nem sempre de uma forma coerente, em toda a problemática cultural gerada em tomo do processo escravista. Por vezes, a linguagem significava mais do que aquilo que os autores pretendiam.


São muitas as figuras proeminentes da história do expansionismo português. Mas os documentos condensam uma outra realidade, onde os escravos se agigantam como esforço muscular e símbolo de miséria humana. A ‘grande aventura’ expansionista também teve destas coisas, que, aliás, se integravam no espírito e na prática da época. Não dar importância, ou referir em apontamento, uma questão que se viveu intensamente, que determinou atitudes e hábitos, que tão estreitamente se relacionou com a evolução colonial, que levou a política portuguesa a confrontar-se com julgamentos e represálias internacionais até meados do século XX, é permitir uma errada ou, pelo menos, limitada apreensão da realidade histórica e dar oportunidade à permanência de falsas concepções, como, por exemplo, a de que Portugal não foi um país escravista, caracterizando-se a sua realidade colonial por uma ‘doçura de costume’ impregnada de um ‘aroma de comunhão de raças’.
É impedir a necessária tomada de consciência que permite agir de uma maneira mais reflectida na sociedade contemporânea. Com a certeza de que nunca se enfrentará bem o que só se observa de lado». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT