segunda-feira, 30 de julho de 2012

O Confronto do Olhar. O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha. «É fundamental distinguir-se entre a percepção do outro e o conhecimento do outro. A primeira é imediata e irredutível, a segunda muito mais lenta, o que implica a falibilidade. O encontro origina o choque de culturas que nos transporta para o problema da singularidade e da origem da civilização europeia»


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«Pêro Vaz de Caminha, “Carta do Achamento do Brasil” afirma que não conheciam a agricultura. A literatura preocupa-se em representar o real, segundo Barthes, real que não é representável, mas apenas demonstrável. Mas em Caminha as palavras têm sabor; saber e sabor têm a mesma etimologia em latim (sapere=ter gosto; exalar um cheiro, um odor; fig.: conhecer, compreender). É de facto necessário que as palavras tenham o máximo de sabor possível.
O Atlântico era a grande via que possibilitava este encontro dos povos. Não será de mais recordar a bela meditação de Braudel sobre quanto de aventura humana se inscreve na história dos mares. Com o Mediterrâneo de outrora, o Atlântico tornou-se o grande veículo das civilizações e das políticas, das técnicas e economias (Fernand Braudel, ‘O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe I’).
Ele sincroniza a vida dos povos e dos estados que tocam o seu espaço, como também das nações e civilizações que nele integram. E o agente silencioso de uma civilização de conjunto que liga o ocidente da Europa às Américas e que, quaisquer que sejam as diferenças, os obstáculos ou mesmo as vontades manifestadas, as impede de desligar os seus destinos.

O Encontro dos Povos. A palavra encontro vem do latim (incontra=em contra): é o choque o efeito de olhar para outro homem de um modo mais ou menos hostil. Encontrar-se com o outro homem começou sendo um ‘sentir que o outro está contra mim’. É curioso que encontro é um nome de uma ave brasileira, também conhecida por soldado.
Será que o acto de encontrar o outro, ou melhor, com o outro, foi uma ameaça para ambos, algo que nos pôs mutuamente ‘em contra’? Encontro é constituído pela categoria ontológica da-relação, no sentido de Tomás de Aquino, ‘hábito entre duas coisas, segundo a qual uma delas convém realmente à outra’. Para Pedro Entralgo, três são os modos principais do encontro e da relação:
  • o outro vai ser para mim um objecto, relação de objectividade;
  • o outro vai ser para mim, e vice-versa, uma pessoa, relação de personalidade;
  • eu vou ser para o outro, e o outro vai ser para mim, se me corresponde, um próximo, relação de proximidade.
É fundamental distinguir-se entre a percepção do outro e o conhecimento do outro. A primeira é imediata e irredutível, a segunda muito mais lenta, o que implica a falibilidade. O encontro origina o choque de culturas que nos transporta para o problema da singularidade e da origem da civilização europeia. Este nem sempre conduziu a lutas sangrentas e guerras devastadoras, pôde constituir uma oportunidade de desenvolvimento. A própria civilização europeia resultou de um choque de culturas, das culturas do Mediterrâneo oriental, as obras literárias mais antigas dos gregos que chegaram até nós, ‘Ilíada’ e a ‘Odisseia’, são testemunhos eloquentes desse choque.
Em relação à singularidade de cada cultura refira-se o que escreveu Heródoto, (‘Histórias III’):
  • Durante o seu reinado chamou um dia Dario os gregos que estavam consigo e perguntou-lhes por que preço estavam dispostos a comer os próprios pais após a sua morte. Responderam-lhe que nada, mas absolutamente nada, os poderia levar a fazer tal coisa. Então Dario chamou os Kallacios, um povo da Índia que tinha por hábito comer os pais, e perguntou-lhes, na presença dos gregos, que tinham à sua disposição um intérprete, por que preço aceitariam que os cadáveres dos pais fossem incinerados. Gritaram horrorizados e rogaram-lhe que não proferisse sequer algo de tão profano. O mundo é precisamente isso.
Através deste episódio, Heródoto queria que os seus contemporâneos gregos respeitassem os costumes estrangeiros e que se tornassem críticos perante aquilo que se lhes afigurava evidente.
Com as navegações, Portugal transformava-se num ‘verdadeiro museu etnográfico onde a Europa podia vir instruir-se dos usos e costumes, das características das raças até agora ignoradas, mesmo pelos maiores geógrafos’. Para Alfredo Margarido, ‘o corte epistemológico dos séculos XV e XVI introduz a diversidade do Outro, uma problemática que as sociedades europeias ainda não conseguiram nem integrar nem superar’. A metafísica ocidental impossibilitou a compreensão do Ser construindo simultaneamente a modernidade e colocando a subjectividade como seu princípio». In António Luís Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.


continua
Cortesia de Caminho/JDACT