quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «Sabes onde vive Marfisa. Vai ter com ela e diz-lhe uma única palavra: “esconde-te”. E faz o recado voando. O criado Diego saiu, sem mudar de sorriso, e o Inquisidor-mor, ajudado pela canícula e pelas recordações dos vinte anos, entregou-se aos prazeres de uma soneca»

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«(…) Em resumo, reverendos senhores, por um lado a cidade cheira a enxofre, o que corrobora a presença do Diabo, que me foi denunciada oportunamente por um espião especializado da minha confiança. E, por outro, temos que o nosso jovem rei, de apenas vinte anos, foi às pu... Reduzida a esses termos, Excelência, a coisa não passa de mera anedota. Mas, e o importante? Poderemos esquecer-nos de que a Armada das Índias está a chegar, e de que na Flandres se prepara uma grande batalha? Vistas dessa maneira, as coisas mudam...
O Inquisidor-mor, com ar bastante aborrecido, meditou. - Mudam, com efeito, padre Villaescusa. E que propõe Vossa Paternidade para atalhar o mal? O padre Villaescusa compreendeu claramente, pela primeira vez, o que vinha sentindo no mais obscuro das suas entranhas: que dependia da sua palavra o futuro do mundo. E não se apressou a responder, nem o fez com arrebatamento, mas sim com tranquilidade. - Em primeiro lugar, Excelência, proponho para hoje à tarde uma reunião do Supremo, com a participação dos teólogos mais acreditados da cidade. E, em segundo lugar, como medida de precaução, que se tire do palácio o confessor do Rei, conhecido judeu, e que se meta nas prisões do Santo Tribunal essa Marfisa...
 - Que não é judia, mas sim cristã velha, e boa cumpridora dos mandamentos da Igreja. Tenho a certeza de que, a esta hora, obedece ao preceito de assistir à missa dominical, e de que estará na sua paróquia. - Proponho que a prendam por suspeitas de endemoninhamento. A atitude do Rei, desde que chegou ao palácio, esta manhã, é altamente suspeita: anda metido consigo, como pasmado. E quem, senão ela, pode ser a responsável? Metê-la num calabouço a pão e água parece-me uma sábia medida de precaução. Quanto ao confessor do Rei... que o senhor distingue com o seu afecto... - interveio o padre Rivadesella.
 - Não o amo mais do que pode amar-se um próximo perigoso, reverência. - Bem se vê: mas eu não posso esquecer que o padre Valdivielso é franciscano. - O hábito não faz o monge. - Neste caso, quem sabe? Parecia que os dois frades iam reproduzir a antiga e famosa contenda entre os diversos e inimigos ramos filiais de São Francisco. O Inquisidor-mor atalhou com mão firme. - Far-se-á tudo o que pede, padre Villaescusa, far-se-á o mais rapidamente possível. Para já, ficam os dois convocados para a reunião do Supremo, esta mesma tarde, mas não demasiado cedo, por causa da canícula. Digamos às cinco. O padre Villaescusa inclinou e cabeça. - Parece-me uma hora pouco usual, mas aceito. - Nesse caso, ide-vos.
Depois de os dois frades se terem despedido, e de supostamente terem abandonado o edifício do Santo Tribunal, o Inquisidor-mor abanou suavemente a campainha. Entrou um fâmulo. - Diz ao meu criado Diego que venha cá. O criado Diego passava dos cinquenta anos, tinha aspecto de beato e, por baixo, um sorriso cínico. - Sabes onde vive Marfisa. Vai ter com ela e diz-lhe uma única palavra: esconde-te. E faz o recado voando. - Sim, Excelência. O criado Diego saiu, sem mudar de sorriso, e o Inquisidor-mor, ajudado pela canícula e pelas boas recordações dos vinte anos que tinha passado em Roma, jovem dominado pela paixão teológica, entregou-se docemente aos prazeres de uma soneca.

Foram encontrar o Rei à porta dos aposentos secretos, a que muita gente chamava também proibidos. A grande chave de ferro continuava na fechadura, e o Rei, encostado à ombreira, parecia em êxtase, o que quer dizer que tinha cara de tolo. Não respondeu aos primeiros chamamentos do seu moço de câmara, e só quando foi sacudido com certa força é que no seu rosto aconteceu algo de semelhante ao despertar de um sonho. O relógio do palácio dava as badaladas das onze, e o moço de câmara sussurrou-lhe, primeiro, e gritou-lhe depois: - Majestade, são horas de ir à missa, e toda a corte espera. Vossa Majestade tem que mudar de roupa. O Rei, ainda meio estremunhado, deixou-se levar. - Pois, tenho que mudar de fato. Pois, tenho de ir à missa com a corte. Estará lá a Rainha?
O moço de câmara conduziu-o até aos aposentos reais por corredores pouco ou nada frequentados àquela hora do dia, talvez pelo muito que o eram de noite: dali partiam os passadiços secretos, os meandros pelos quais deslizava o pecado nocturno. Em breve, o Rei viu-se diante do seu grande espelho, e o moço de câmara com dois fatos nas mãos. - De preto ou de azul-celeste, Majestade? Quase sem pensar, o Rei respondeu-lhe que de preto, e, quando se achou vestido, pediu o colar de ouro para quebrar um pouco aquela escura monotonia. Já batiam à porta, e perguntavam se o Rei estava pronto. - Vai num credo! - respondeu o moço de câmara, e apressou-se a abrir a porta». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da Caminho/JDACT