segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Noite de 15 de Julho de 1900. Conferência Pública. Atheneu Commercial de Lisboa. Alexandre Herculano. Diogo Rosa Machado. «… o facto da igreja ter posto este homem feroz; cruel e sanguinário no número dos santos não impediu Herculano de pintá-lo com toda a fidelidade»

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«(…) O amor da verdade e da justiça predominava de tal modo em Herculano que seria capaz de sacrificar-lhe todos os outros affectos do seu coração; elle punha a verdade acima de tudo. Herculano nunca teve em mira sacrificar a sua consciência ao serviço de qualquer seita ou partido; no seu rigoroso espirito a paixão pela verdade estava acima da religião e do patriotismo. A grande imparcialidade com que Herculano apreciava não só os papas mas também aquelles homens a quem a igreja canonizou, mostra-nos evidentemente que o espirito catholico não suffocou nelle a paixão mais nobre do verdadeiro historiador, o amor da verdade. O seguinte trecho do segundo volume da Historia de Portugal é uma prova da veracidade da minha asserção: ao passo que um homem de génio, Innocencio III, se assentava no solio pontifício para manter a acção da jerarchia sacerdotal, surgiam da obscuridade outros dous homens que haviam de hasteiar de novo a bandeira da abnegação e fazer abraçar pelos seus sectários a rigorosa pobreza repellida das congregações monásticas, instituindo em frente d'ellas as congregações mendicantes. Ninguém ignora os nomes d'estes dous indivíduos, Francisco de Assis e Domingos de Gusmão, aquelle, humilde mas abastado burguês italiano que, depois de convertido ao mysticismo, seguia com tanto ardor a vereda da mortificação como antes seguira a espaçosa estrada dos deleites; este, nobre e altivo hespanhol, já revestido de dignidades ecclesiasticas e que se arrojara á grande empreza da reforma sem perder os caracteres da sua raça. Austero e inflexível, homem cujos avós pelejaram sempre contra os sarracenos com o ferro numa das mãos e o facho do incêndio na outra, dir-se-hia que mal sabe combater de diverso modo os que não crêem como elle. A sua exaltação religiosa é intolerante: a luz suave do Evangelho não pôde vê-la senão reflexa na espada polida, senão retincta em sangue. O gemido do hereje no patíbulo é para elle um hymno ao manso cordeiro do Calvário: para elle o algoz exerce um sacerdócio.
Neste eloquentíssimo parallelo, um dos mais concisos, enérgicos e claros de todas as litteraturas, mostranos Herculano a profunda differença que houve entre os fundadores das duas ordens dos franciscanos e dominicanos. O fanatismo do terrível S. Domingos de Gusmão foi por elle estigmatizado num estylo vigorosamente poético; o facto da igreja ter posto este homem feroz; cruel e sanguinário no número dos santos não impediu Herculano de pintá-lo com toda a fidelidade. É de admirar que, referindo-se o eminente historiador a estes dois vultos da igreja, não fizesse a mais leve menção do santo mais popular para os portugueses, de Santo António, que não só pertenceu á ordem franciscana mas também viveu no reinado de Affonso II e cuja gloria o clero português quasi que olvidou durante séculos deixando-o envolto na lenda milagreira e chegando apenas a occupar-se dos seus escriptos e a enaltecer a sua influencia social quando pretendeu fazer manifestações reaccionárias e jesuíticas.
Estou profundamente convicto de que, se o grave historiador, apesar de ser eminentemente christão e patriota, não se occupou do referido santo, é porque, relativamente a esta gloria nacional, não encontrou nos cartórios que tão activamente revolveu documentos que satisfizessem o seu espirito extremamente severo e rigoroso. Aquelle grande philosopho, a quem Theophilo Braga chama catholico ferrenho, punha sempre o amor da verdade acima do próprio catholicismo. Até no modo de considerar a religião christã se revela a poderosa autonomia da sua vasta e profunda intelligencia. Com que energia não combateu Herculano as ambições clericaes, a politica da igreja! O catholicismo, que elle apreciava não só poeticamente mas também debaixo do aspecto prático, não o impediu de tirar conclusões, como pretende o auctor da Historia do romantismo. O espirito de Herculano era ainda mais positivo do que o de alguns positivistas que se deixam seduzir pelas miragens da sua imaginação e muitas vezes da imaginação alheia». In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.


Cortesia de LTavares Cardoso & Irmão/JDACT