quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Marânus. Poesia. Teixeira de Pascoaes. «E Marânus olhava para aquela aparição! Sonho encarnado! Amor! Alma tão evidente que era corpo, perfume tão intenso que era flor! E a voz de Eleonor, etérea chama, as trevas dissolvendo, assim falou…»

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Marânus. Marânus e Eleonor
[…]
E Marânus, na louca tentação
que eleva as nossas almas para o céu,
ansioso e desolado, exclama ainda:

Ai de ti! Ai de mim! Tu és a dor!
Eu sou também a dor! E qual a chama
que outra chama extermina? Eu quero amar
o que é eterno e vivo e que não ama!

As meigas ovelhinhas, com surpresa,
olhavam a Pastora. A sua trança,
desprendida, flutua; é luz acesa
a direcção do zéfiro indicando.

III
Vinda no brando zéfiro tremente,
uma nuvem o sol escureceu.
E Eleonor, essa Deusa, novamente,
diante de Marânus aparece.
Um crepúsculo terno diluía
a nitidez cortante das arestas.
E no cinzento azul quase se ouvia
brumoso som de arrefecidas lágrimas.
Era a sagrada luz, naquele instante
em que se torna sombra; e, sem deixar
de alumiar os campos, já permite
o nascer das estrelas e o cantar
dos pássaros sedentos de penumbra.

Era o sol, comovido, e extasiado,
no seio duma nuvem, radiando
com um fulgor anímico e velado.

E Eleonor, tão alta e inacessível,
no seu divino encanto e formosura,
emanava outra luz espiritual,
que as pedras embebia de ternura...

E Marânus olhava para aquela
aparição! Sonho encarnado! Amor!
Alma tão evidente que era corpo,
perfume tão intenso que era flor!

E a voz de Eleonor, etérea chama,
as trevas dissolvendo, assim falou:

Sou aquela que é amada e que não ama,
porque meu ser é eterno e virginal.
Eu vivo além do amor e da tristeza,
e destes belos montes solitários,
e da amplidão que envolve a Natureza:
o fluido mar, onde as estrelas nadam...

Serras doiradas, cristalinas fontes,
ondas, campos, manhãs, tudo o que abrange
a curva, em roxa cor, dos horizontes,
é para mim a Sombra originária;
sombra de mãe, remota e dolorida,
que ainda me traz ao peito e acaricia...
Morte de que descende a minha vida,
como da noite morta a luz dos astros.
[…]

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

MLCT
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT