quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Deontologia e capitalização simbólica na advocacia portuguesa contemporânea. João Sedas Nunes e Miguel Chaves. «Este modo de ver tem particular impacto na obra de Freidson, que associa a ética profissional ao ‘poder profissional’, particularmente às formas de legitimação…»

Cortesia de wikipedia

«Partindo de um estudo sobre os jovens que ingressam na advocacia portuguesa, este artigo retoma uma temática bastante arredada da sociologia contemporânea, a ético-deontologia dos grupos profissionais. Sustenta-se que os argumentos ético-deontológicos conduzem os jovens que acedem à profissão através do protótipo liberal a desenvolverem aspirações compatíveis com o exercício liberal, a avaliarem positivamente a sua situação profissional e a adquirirem capital simbólico, num momento marcado pela ascensão dos jovens colaboradores em grandes sociedades de advogados. O argumentário ético-deontológico faz ainda com que estes últimos, distantes do protótipo liberal, não adquiram uma supremacia simbólica absoluta no interior da profissão.

Reequacionando a problemática ético-deontológica
Desde a década de 1960, temos vindo a assistir, no contexto da sociologia das profissões, à crítica e progressiva perda de hegemonia do paradigma funcionalista, em particular da corrente parsoniana, processo comum a vários outros domínios da investigação sociológica. Nenhuma das dimensões de análise dos grupos profissionais ficou incólume a esse movimento reativo, nomeadamente aquela sobre a qual nos iremos debruçar, os aspetos ético-deontológicos das profissões. No quadro do estrutural-funcionalismo clássico, particularmente na obra de Parsons, mas também em textos de Wilensky, Barber ou Goode, os aspectos ético-deontológicos correspondiam a uma das características omnipresentes em qualquer definição ideal-típica de profissão, contribuindo para as distinguir das “meras ocupações”. Os elementos éti­cos constituíam, além disso, os pilares da exigente formação moral a que todos os profissionais seriam submetidos. A sua interiorização sob a forma de normas impessoais seria, por sua vez, responsável, a par dos códigos normativos, pelo facto de os profissionais agirem segundo motivações altruísticas.
Em termos gerais, é possível considerar que nas abordagens posteriores, contrárias ao funcionalismo, as dimensões ético-deontológicas deixam de ser consideradas algo de intrinsecamente constitutivo dos grupos profissionais e dos processos de socialização daqueles que os integram, para passarem a ser equacionadas como um conjunto de elementos reivindicados pelos profissionais no sentido de legitimarem a sua situação privilegiada na divisão social do trabalho. Se é já possível reconhecer este tipo de pressupostos no trabalho de refocalização, sociológica das profissões conduzido pelo interacionismo simbólico, é, no entanto, a partir de um conjunto de obras de inspiração weberiana e marxista que se contesta, assumidamente, o modo como as perspectivas funcionalistas haviam conceptualizado esses aspectos. Autores como Roth, Chapoulie ou Gyarmati, entendem que a reivindicação da posse de putativas qualidades e atributos éticos pelos grupos profissionais se encontra inextricavelmente ligada à ideologia e aos interesses dos seus membros, e é portanto sob essa ótica que a questão da deontologia deve ser sociologicamente analisada. Este modo de ver tem particular impacto na obra de Freidson, que associa a ética profissional ao poder profissional, particularmente às formas de legitimação que lhe subjazem, e, apesar das suas diferenças, nos escritos de Larson. Como é sabido, Magali Larson proclama que a reivindicação de pretensos atributos éticos, como o altruísmo, constitui, a par da monopolização de determinadas competências intelectuais, um dos elementos chave na defesa da ideologia do profissionalismo, ideologia que consiste num dos dispositivos estratégicos centrais adoptados pelos grupos profissionais no sentido de criarem mercados de trabalho fechados, de desenvolverem projectos de mobilidade social e de garantirem a sua preservação diante de ameaças externas.
A crítica do sentido axiológico da ético-deontologia presente no funcionalismo parsoniano desenvolvida por estas perspectivas faz, em nosso entender, pleno sentido. A perspectiva parsoniana acabava por representar (mesmo involuntariamente) uma espécie de contributo sociológico para o engrandecimento das profissões e para a legitimação do poder profissional. No entanto, e não obstante os seus méritos, as abordagens pós-funcionalistas não deixam também de comportar alguns riscos e limitações. Ao reduzirem as dimensões ético-deontológicas a um papel de meros artefactos ideológicos mobilizados pelos grupos profissionais diante da sociedade em geral, ou de grupos profissionais concorrentes, elas tenderam a menosprezar alguns dos efeitos que as dimensões ético-deontológicas podem exercer sobre a instituição e o funcionamento dos mundos profissionais e, concomitantemente, a sua análise por parte das ciências sociais». In João Sedas Nunes e Miguel Chaves, Deontologia e capitalização simbólica na advocacia portuguesa contemporânea, Análise Social, 202, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2012.

Cortesia de ICSUL/JDACT