segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Amadis de Gaula Tradução de Graça Lopes. «… gasto o que tanto do seu serviço é; e se porventura algo cá em esquecimento ficar, não ficará perante a sua real majestade, onde lhes tem aparelhado o galardão que por isso merecem»

Cortesia de wikipedia e jdact

Prólogo
«Considerando os sábios antigos, que os grandes feitos das armas deixaram em escrito, quão breve foi aquilo que com efeito verdadeiramente nelas se passou, assim como as batalhas do nosso tempo que [por] nós foram vistas nos deram clara experiência e notícia, quiseram, sobre algum cimento de verdade, compor tais e tão estranhas façanhas, com que não apenas pensaram em deixar perpétua memória aos que a elas foram afeiçoados, mas também que fossem lidas com grande admiração, como nas antigas histórias dos gregos e troianos e outros que batalharam aparece por escrito. Assim o diz Salústio, que tanto os feitos dos de Atenas foram grandes quanto os seus escritores os quiseram aumentar e exaltar. Pois se no tempo destes oradores, que mais nas cousas da fama que do interesse ocupavam os seus juízos e fatigavam os seus espíritos, acontecera aquela santa conquista que o nosso muito esforçado rei fez do reino de Granada, quantas flores, quantas rosas por eles seriam inventadas sobre ela, assim no tocante ao esforço dos cavaleiros, nas revoltas, nas escaramuças e perigosos combates e em todas as outras cousas de confrontos e trabalhos que para tal guerra se aparelharam, como nos esforçados razoamentos do grande rei aos seus altos homens nas reais tendas ajuntados, e as obedientes respostas por eles dadas e, sobretudo, os grandes elogios, os crescidos louvores que merece por haver empreendido e acabado jornada tão católica! Por certo, creio eu que tanto o verdadeiro como o fingido que por eles fosse contado na fama de tão grande príncipe, com justa causa, sobre tão largo e verdadeiro cimento, pudera tocar nas nuvens; como se pode crer que, pelos seus sábios cronistas, se lhes fora dado seguir a antiguidade daquele estilo em memória aos vindouros, por escrito teriam deixado, pondo com justa causa em maior grau de fama e alteza verdadeira os seus grandes feitos que os dos outros imperadores, que com mais afeição que verdade que os nossos rei e rainha, foram louvados; pois que tanto mais o merecem quanto é a diferença das leis que tiveram, que os primeiros serviram o mundo, que lhes deu o galardão, e os nossos o Senhor dele, que com tão conhecido amor e vontade ajudar os quis, por os achar tão dignos de porem em execução com muito trabalho e gasto o que tanto do seu serviço é; e se porventura algo cá em esquecimento ficar, não ficará perante a sua real majestade, onde lhes tem aparelhado o galardão que por isso merecem.
Outra maneira de mais conveniente crédito teve na sua história aquele grande historiador Titus Livius para exaltar a honra e a fama dos seus romanos: que afastando-os das forças corporais os chegou ao ardimento e esforço do coração; porque, se quanto ao primeiro ponto alguma dúvida se pode encontrar, no segundo não se encontraria; que, se ele por mui estremado esforço deixou em memória a ousadia daquele que queimou o próprio braço (a história de Múncio, contada por Tito Lívio), e daquele que por sua própria vontade se deitou no perigoso lago, já por nós foram vistas outras semelhantes cousas por parte daqueles que, menosprezando as vidas, quiseram receber a morte, para a outros as tirarem, de guisa que, pelo que vimos, podemos crer no que dele lemos, ainda que mui estranho nos pareça. Mas, por certo, em toda a sua grande história não se encontrará nenhum daqueles golpes espantosos, nem encontros milagrosos que nas outras histórias se encontram, como daquele forte Heitor se conta, e do famoso Aquiles, do esforçado Troilos e do valente Ajax Thalamon, e de outros muitos de que gram memória se faz, segundo a afeição daqueles que por escrito os deixaram. Bem assim como outras mais cerca de nós, daquele assinalado duque Godofré de Bulhom no golpe de espada que na ponte de Antioquia deu e do turco armado que quase em dois pedaços fez, sendo já rei de Jerusalém. Bem se pode e deve crer ter havido Tróia, e ser cercada e destruída pelos gregos, e assim mesmo ter sido conquistada Jerusalém, com outros muitos lugares por este duque e seus companheiros, mas semelhantes golpes como estes atribuímo-los mais aos escritores, como já disse, do que terem com efeito ocorrido verdadeiramente. Outros houve de mais baixa sorte que escreveram, que não apenas escreveram sobre algum cimento de verdade, mas nem sobre o rasto dela. Estes são os que compuseram as histórias fingidas nas quais se encontram as cousas admiráveis fora da ordem da natureza, que mais pelo nome de patranhas do que de crónicas com muita razão devem ser tidas e chamadas». In Graça Videira Lopes, tradução da obra de Garci Rodriguez de Montalvo, (Ediciones CátedraMadrid, 1996), 2006/2007.

Cortesia de Wikipedia/JDACT