domingo, 14 de fevereiro de 2016

Testamentos Régios. Primeira Dinastia. António Brochado Mota. «… tendo, teoricamente, como primeiro objectivo, a garantia de uma Boa Morte e a probabilidade de obter um bom lugar no Além»

Cortesia de wikipedia

Primeiro e segundo testamentos do rei Afonso Henriques
«Ângela Beirante coloca o aparecimento do Testamento em Portugal, ou, simplesmente, a acção de testar, nos finais do século XII. Não nos pertence questionar esta afirmação. O que podemos dizer, segundo informações colhidas em várias leituras, é que o seu aparecimento no nosso país não chega exclusivamente só por efeito da sua propagação através do Direito Civil Romano. O Direito Canónico, e, concomitantemente, a Igreja Católica, por ele regida, foram talvez os maiores responsáveis pela sua difusão, aconselhando e impondo até, a que os seus fiéis fizessem atempadamente o seu Testamento, não esperando pelos últimos momentos da sua vida para ditar as derradeiras vontades. Para a Igreja, era a melhor forma de garantir um bom lugar no Além e de ter uma Boa Morte. Para pressionar os cristãos, a Igreja chegou mesmo a negar sepultura eclesiástica àquele que morresse ab intestato, ou que fizesse testamento sem a presença de um pároco junto de si. A não observação desta particularidade determinava a que a própria Igreja se apresentasse com direito à terça ou à quarta parte dos bens do testador, exigindo a nulidade do seu testamento. Não estranha, por isso, que a elaboração dos testamentos e o seu cumprimento estivessem por muitos anos remetidos às autoridades religiosas, alegando dúvidas quanto à eficácia da sua resolução por parte das autoridades civis. Com o monarca Afonso III surgiram alguns sinais de mudança quanto à autoridade da Igreja nesta matéria, atribuindo-se aos tribunais públicos o papel anteriormente desempenhado por ela em tal assunto, com o argumento da prática de abusos por parte de algum clero. Mesmo assim, este monarca ainda evoca, no seu testamento, a autoridade do papa Honório III ou a daquele que viver na hora da sua morte, para que as suas vontades se cumprissem rigorosamente. […] Et supplico Sanctitatem ejus, quod si aliquis, vel aliqui voluerit, vel voluerint impedire istud meum testamentum quod non compleatur, & singula supradicta non sustinet, sed faciat sicut pro justitia debet facere pro salute animarum.
Torna-se claro que, a par desta autoridade invocada pela Igreja, não estaria só o desejo de proteger o testador da ineficácia das leis civis, invocada a seu favor. Também a obtenção de parte dos bens materiais, para além dos benefícios de cláusulas pias, como dinheiro para missas diárias, aniversários por morte e a realização de outros actos religiosos, estavam presentes no espírito dos eclesiásticos, sendo certo que, quer num caso, quer noutro, as leis canónicas estavam inteiramente do seu lado. Por causa destes interesses, João Martins, bispo de Lisboa, mereceu do papa o epíteto de cobiçoso e usurpador do poder real. Na sequência de queixa que lhe foi apresentada por Dinis I, aquele dignitário foi então obrigado a retroceder nas suas orientações que a tal respeito difundia pelos párocos de Lisboa.  Verifica-se assim que o Testamento, enquanto instituição jurídica que nos chega legada pelos Romanos, é depois muito aproveitada e fortemente divulgada pela Igreja junto dos seus crentes, tendo, teoricamente, como primeiro objectivo, a garantia de uma Boa Morte e a probabilidade de obter um bom lugar no Além. Mas se para uns, este documento tinha como única finalidade a salvação da própria alma, para outros, era um meio de manifestar as últimas vontades, transmitir ou extinguir direitos, dispor, no todo ou em parte, do seu património para depois da morte, reconhecer, ou não, filhos extraconjugais, nomear os seus tutores em caso de menoridade, impor a incomunicabilidade dos bens, temporária ou vitalícia, indicar o lugar para a sua sepultura e exigir determinadas manifestações religiosas, quotidianas, mensais e anuais, e ainda o perdão de qualquer acto indigno, bem como o de dívidas alheias ou o pagamento das próprias. São estas as disposições gerais dos Testamentos.
No caso dos Reis ou da grande nobreza, o Testamento tinha uma finalidade acrescida: nomear o sucessor à respectiva coroa ou Casa e entregar-lhe o poder e a governação. No caso dos reis importava especificamente garantir a continuidade da dinastia; no caso dos nobres objectivava-se manter casa e títulos, normalmente atribuídos ao primogénito varão, de forma a que por ele se prolongasse o nome da família. Mas se, no início do século XII, data a partir da qual se generalizou o acto de testar, as escrituras tinham como primeiro objectivo a salvação da alma, o que se manteve até bem perto do século XIX, a partir desta época elas foram perdendo a sua finalidade espiritual, até se diluírem no tempo, ficando apenas, como motivo principal, o abordar da questão dos bens materiais. O modelo dos Testamentos Régios da Primeira Dinastia Portuguesa é, podemos dizê-lo, quase sempre o mesmo. Os monarcas manifestam, como primeira preocupação, o desejo de acudir à salvação da sua alma, ao que se segue a nomeação do legítimo herdeiro da coroa. Depois vem a indicação do local onde pretendem ser sepultados e a explanação das últimas vontades. Portanto, as fórmulas de testar não sofrem grandes alterações e, quando existem, devem-se mais ao estilo do chanceler que executa o documento do que a mudanças conceptuais produzidas pelo evoluir do Direito Civil Romano ou do Direito Canónico. O rei Afonso Henriques, nos seus dois Testamentos, não se desvia destas linhas de orientação: invoca, primeiro que tudo, a Santíssima Trindade, e só depois se identifica como rei de Portugal por vontade de Deus, fazendo de seguida uma estrita referência à sua ascendência, a começar pelo seu avô, o magno imperador Afonso, a que se seguem os nomes do pai, o conde Henrique e da mãe, a Rainha dona Teresa. Agradece ao Criador os benefícios que Dele recebeu, concedendo-lhe o alargamento do seu Reino e saúde para o conseguir. Faz algumas alusões ao dia da sua morte e ao dever de se preparar para ela, intercalando com algumas citações dos Evangelhos alusivas ao momento final da vida, e só depois começa a dispor, com justiça, dos seus bens materiais, o que faz para remissão dos seus pecados e para que receba em centuplicado por Deus no futuro. […] Hec itaque omnia ego predictus Alfonsus diligenter considerans animaduerit quia iustum et ualde necessarium est unicuique ratione disponent, dum uiuit in hac uita ob remissionem pecatorum suorum sua omnia delegare ubi uelit et quibus uelit, ut illud a Domino centuplicatum recipiat in futuro». In António Brochado Mota, Testamentos Régios, Primeira Dinastia (1109-1383), Dissertação de Mestrado em História Medieval, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Lisboa, 2011.

Cortesia da UL/FL/História/JDACT