quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Mountolive. O Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Será que então eles existiam? Mas aqui, na posição vantajosa de alguém integrado na tela que a sua própria imaginação pintou, o exótico pareceu-lhe subitamente normal»

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«(…) Então gostou?, crocitou o inválido num tom onde flutuava (como uma mancha de óleo à superfície da água) o orgulho e a suspeita. Um criado negro, gigantesco, rolou uma mesa onde havia copos e uma garrafa de uísque, estranha anomalia: bebiam cocktails pôr do Sol, como quaisquer coloniais, nesta velha casa inundada de tapetes magníficos, em cujas paredes se ostentavam as zagaias tomadas em Omdurman e em cujas salas se viam estranhos móveis Segundo Império fabricados na Turquia. Sente-se, disse o velho, e Mountolive, sorrindo-lhe, sentou-se, notando que mesmo aqui, nas salas de visitas, havia livros e jornais por toda a parte, símbolos da fome insaciável de Leila pelas coisas do saber. Normalmente ela guardava os seus livros e jornais no harém, mas acabavam sempre por inundar a casa. Seu marido não participava desse mundo. Tanto quanto possível ela evitava torná-lo consciente desse facto, temendo o seu ciúme que crescia à medida que a doença se agravava. Os rapazes lavavam-se ali perto, Mountolive ouvia sons de águas correntes. Dentro de alguns minutos pediria licença e retirar-se-ia a fim de vestir um fato branco para jantar. Bebia e falava com o inválido na sua voz baixa e melodiosa. Parecia-lhe uma coisa terrível e imprópria ser o amante da mulher; o facto de Leila ser capaz de dissimular tão facilmente cortava-lhe a respiração. (A sua voz fria e doce, etc., etc.; tentaria não se deixar absorver tão completamente por ela. Estremeceu e sorveu a bebida). Tinha sido difícil encontrar o caminho do solar para onde se dirigia com uma carta de apresentação; a estrada para carros não ia além do rio e era necessário utilizar daí para diante cavalos para alcançar a casa erigida no meio dos canais. Teve de esperar quase uma hora antes de um transeunte amável lhe oferecer um cavalo que o levou ao seu destino. Nesse dia não estava em casa ninguém além do inválido. Mountolive notou divertido que ao ler a carta de apresentação, redigida no estilo floreado dos árabes, o inválido murmurava as tradicionais respostas que a delicadeza impõe aos cumprimentos que o autor da missiva lhe endereçava, tal como se aquele se encontrasse presente. Depois, levantando a cabeça, considerou o jovem inglês com simpatia. Ficará connosco; é a única maneira de melhorar o seu conhecimento da língua árabe. Dois meses, se assim desejar. Os meus filhos falam inglês e terão muito prazer em conversar consigo; minha mulher também. Para eles será uma alegria ver por aqui uma cara nova. E o meu querido Nessim está no seu último ano de Oxford.
Orgulho e prazer brilharam fugazmente nos olhos afundados e depois foi novamente o habitual olhar de dor e tristeza. A doença suscita o desprezo. Um doente não ignora esse facto. Mountolive aceitou, e renunciando ao gozo de uma licença na pátria obteve permissão para ficar dois meses em casa deste cavalheiro copta. Era um abandono de tudo o que lhe fora habitual este ingresso numa existência familiar fundada e nutrida na pompa inconsciente de um feudalismo que se ia filiar na Idade Media ou mais longe ainda. O mundo de Burron, Beckford, Ladv Hester... Será que então eles existiam? Mas aqui, na posição vantajosa de alguém integrado na tela que a sua própria imaginação pintou, o exótico pareceu-lhe subitamente normal. A sua poesia vinha do facto de essa vida ser vivida naturalmente. Mountolive, que já dominava a língua, sentiu-se contudo pela primeira vez penetrar num país estrangeiro com os seus estranhos costumes. Sentiu o que se sente em casos análogos, nomeadamente o vertiginoso prazer de perder uma personalidade antiga para ganhar outra nova. Tinha por assim dizer a impressão de que os contornos da sua pessoa se dissolviam. Estará nisso o verdadeiro sentido da educação? Tinha começado a transplantar um enorme e intacto mundo da sua imaginação para o solo da sua nova vida. A família Hosnani era variada em espécies. O gracioso Nessim e sua mãe pertenciam ambos ao mesmo mundo intenso da inteligência e da sensibilidade. Ele, o filho mais velho, estava sempre pronto para servir a mãe, fosse para lhe abrir uma porta ou levantar um lenço caído. Falava perfeitamente inglês e francês, era impecável de maneiras e o seu corpo era elegante e potente. Em frente destes, iluminados pela luz das velas, viam-se os outros dois: o inválido nas suas cobertas e o filho mais novo, grosseiro e abrutalhado como um mastim e com um ar indefinível de estar sempre pronto para lutar. De compleição pesada e feio, era contudo gentil; mas pelo seu olhar de adoração percebia-se perfeitamente que amava o pai acima de tudo. A simplicidade brilhava-lhe nos olhos, era serviçal, e quando o trabalho nas terras o não afastava de casa estava sempre pronto para dispensar os serviços do criado silencioso que esperava por detrás da cadeira de rodas, servindo ele próprio o pai com um orgulho radiante, feliz mesmo, quando o carregava nos braços, com uma espécie de avidez ciumenta, para conduzi-lo aos lavabos. Reservava para sua mãe o mesmo olhar de orgulho e maldade infantil que se descobria nos olhos do enfermo. Contudo, embora os irmãos estivessem assim divididos como ramos de oliveira, pertenciam ao mesmo tronco e amavam-se profundamente, pois na verdade um era complemento do outro, sendo um forte onde o outro era fraco. Nessim detestava o derramamento de sangue, o trabalho manual e as maneiras rudes; Narouz sentia prazer em tudo isso. E Leila? Mountolive considerava-a um belo enigma, quando teria podido, se tivesse mais experiência, reconhecer na sua naturalidade uma perfeita simplicidade de espírito e na sua natureza extravagante um temperamento frustrado no seu desenvolvimento normal e que tinha aceitado de boa mente uma solução de compromisso». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Mountolive, 1958, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia PdQuixote/JDACT