sábado, 24 de junho de 2017

História dos Judeus Portugueses. Carsten L. Wilke. «Expostos a essa investida da intolerância nos reinos muçulmanos, os judeus não sofriam menos a hostilidade dos cristãos do Norte, animados por um espírito de cruzada»

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No Gharb dos Árabes
«(…) Sob os Omíadas de Córdova (756 - 1031), a Lusitânia, ou antes, a província chamada al-Gharb, O Ocidente, nome que sobreviveu em Algarve, permanecia uma região periférica. Não possuímos informações concretas sobre a vida judaica nessa província, com excepção das relativas à cidade de Mérida. José ben Isaac Ibn Abitur, talmudista e poeta nascido em Mérida no início do século X, sabia ainda que o seu trisavô administrara a justiça criminal com tanta severidade que os malfeitores lhe chamavam Satanás, pois podia infligir todas as quatro formas talmúdicas de execução capital, competência que nenhum tribunal judaico alguma vez tivera fora da Terra de Israel. Além disso, uma pedra tumular descoberta em Mérida dá a conhecer um certo Rabbi Jacob ben Senior, que morreu com a idade de 63 anos, cheio de sabedoria, exercendo a arte dos médicos. A inscrição, datada da época omíada, emprega ainda um latim hispanizado.
As marcas bíblicas, diferentes da Vulgata, dão testemunho de uma cultura religiosa judaica em língua romana. Como os seus correligionários de Córdova, capital do califado, os judeus do Gharb permaneceram leais ao poder omíada durante as diferentes revoltas animadas por cristãos, muladis (hispano-romanos islamizados) e certos elementos do clero muçulmano. Tida por principal foco de sedição, Mérida foi duramente castigada em 875, e os seus habitantes foram expulsos, alguns para Badajoz, nova capital provincial, e outros para Córdova. É de supor que essa expulsão tenha estado igualmente na origem de uma dispersão pela província. A existência de pequenas comunidades no actual território português parece ser atestada por Ibn Daud. Falando de uma família erudita de Mérida, os Ibn al-Balia, descendentes do lendário fundador Baruch, esse autor faz alusão a uma epístola redigida em Sura, no Iraque, pela autoridade rabínica suprema da época, Saadia Gaon (882-942). Era endereçada às comunidades judaicas de Córdova, Elvira, Lucena, Baena, Osuna, Sevilha e à grande cidade de Mérida, bem como a todas as que estão na sua vizinhança. Vemos que Mérida se singulariza nessa enumeração pela sua dispersão em comunidades filiais.
Que comunidades eram essas? Encontramos menção a uma presença judaica aquando da reconquista cristã das cidades de Coimbra (878), Santarém (1147),Évora (1165) e Beja (1179). A mais antiga dessas comunidades judaicas parece ser a de Santarém. Notemos que estas quatro cidades luso-islâmicas habitadas por judeus são de fundação romana e estão todas situadas no interior do país, na proximidade da fronteira com a Cristandade. Em contrapartida, nenhuma fonte testemunha uma presença judaica em Lisboa durante a época islâmica.

No reino de Leão
Foi muitas vezes celebrada a tolerância dos regimes ibero-muçulmanos face às populações cristãs e judaicas. Essa tolerância não era unicamente inspirada pela generosidade. Na realidade, a sobrevivência do poder muçulmano dependia do apoio dessas populações, apoio que se encontrava já bem hipotecado na segunda metade do século IX. A partir dessa época, as lutas internas do califado de Córdova e o misticismo intransigente, que então se apoderou dos seus teólogos, impeliram numerosos cristãos a emigrar. Nas Astúrias, estes reforçavam os pequenos reinos que começavam a estender-se para sul. A emigração intensificava-se com cada nova vaga islamita, culminando com a invasão dos Almóadas em 1140, que proscreveram durante algum tempo o exercício dos cultos não muçulmanos.
Expostos a essa investida da intolerância nos reinos muçulmanos, os judeus não sofriam menos a hostilidade dos cristãos do Norte, animados por um espírito de cruzada igualmente feroz. Identificando os judeus com o inimigo muçulmano, os cavaleiros massacravam-nos no decurso das suas reconquistas». ». In Carsten L. Wilke, História dos Judeus Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN 978-972-441-578-9.

Cortesia de E70/JDACT