terça-feira, 6 de junho de 2017

O Conde Negro. Tom Reiss. «Essas festas eram chamadas de noites de Adão e Eva e um cortesão recordava que, após o champanhe, as luzes eram desligadas e os convivas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Fabrice Dufour, o vice-prefeito da pequena cidade de Villers-Cotterêts, com as ruas pavimentadas de pedra, exibia uma expressão sofrida. Ele estava encarregado da herança cultural da cidade, que, não obstante a sua aparência modesta, era considerável. Isso incluía um breve momento como o centro do poder na França do Ancien Régime, quando, por ocasião da morte de Luís XIV, em 1715, seu sobrinho Filipe, duque d’Orléans e regente de Luís XV, então com 5 anos de idade, decidiu que a corte devia passar ali tanto tempo quanto fosse possível. Essa pequena cidade cinzenta, 80 quilómetros ao norte de Paris, adquiriu uma reputação fora do comum para o escândalo, mau comportamento e devassidão reais, o que na França do século XVIII não era pouca coisa. O antigo palacete renascentista que eu avistava acima do escritório em que me encontrava fora cenário de jantares nudistas e orgias em larga escala envolvendo bondage, a mistura de realeza e povo da cidade e a assistência de profissionais, tanto masculinos como femininos. Essas festas eram chamadas de noites de Adão e Eva e um cortesão recordava que, após o champanhe, as luzes eram desligadas e os convivas despidos entregavam-se a uma flagelação mútua, procurando parceiros segundo ditava o acaso da escuridão e com uma disposição que divertia Sua Alteza imensamente.
Conta-se que anos mais tarde, Luís XVI, o tímido e desajeitado marido de Maria Antonieta, corava de vergonha ante a mera menção do nome da cidade, coisa que não ouviria com muito mais frequência após 1723, quando o regente morreu e o foco da vida cortesã voltou a transferir-se para Versalhes. Com efeito, só se ouviria falar da cidade outra vez graças ao homem que me motivara a vir para cá a fim de saber mais sobre sua vida, que vivera e morrera aqui mais ou menos na época da Revolução Francesa. O próprio atraso desanimador do lugar, evidente nesse gelado dia de janeiro, deu-me esperança de que certos documentos que eu acreditava existir talvez pudessem ser encontrados aqui. Atrás de sua mesa, o vice-prefeito era um homem imponente. Exibia um olhar preguiçoso que se entrecerrava de maneira involuntária e uma tendência igualmente involuntária a sorrir fracamente quando falava.
Por demais delicada, repetiu com firmeza. Então ficou sem dizer nada por talvez trinta segundos, durante os quais lançou olhares significativos para mim, para a janela e os objectos na sua mesa. Notei uma revista sobre motocicletas na sua mesinha lateral, junto a uma pilha de folhetos sobre o palacete. Não dava para ter a certeza, mas me parecia que o vice-prefeito usava rímel. Os seus grandes olhos castanhos pareciam um pouco bem definidos demais. Ele abanou a cabeça, sorriu e fez um som. Senhor, sei que viajou dos Estados Unidos até aqui para vê-la, mas receio que isso seja impossível de se arranjar. Comecei mentalmente a preparar um discurso protestando de modo adequado em francês. Mais do que qualquer outra cultura na terra, os franceses respeitam o protesto, e é por isso que regularmente emperram as suas indústrias e instituições cruciais com greves gerais nacionais, mas o protesto deve ser bem articulado. O vice-prefeito falou outra vez, porém, antes que eu pudesse dizer uma palavra.
Será impossível de se arranjar, monsieur, porque a mulher que o senhor veio até aqui para ver já faleceu. Pensei talvez ter compreendido mal. A voz da mulher que concordara em me receber, de um museu local, seu nome era Elaine, não parecia pertencer a uma pessoa idosa. Eu não sentira necessidade de perguntar o seu sobrenome, já que era a única pessoa na cidade que trabalhava lá, à excepção de um segurança. Foi muito súbito, disse o vice-prefeito. Achei que tivesse acrescentado alguma coisa sobre uma enfermidade, talvez câncer, mas não tive a certeza. O choque da informação pareceu fazer meu francês descer dois níveis. Ela não mencionou nada para mim sobre estar doente, eu disse, pesaroso. Ficámos todos chocados e muito tristes, disse o vice-prefeito. Tentei manter a compostura e, após murmurar as minhas condolências, explicar sobre a importância de ver os documentos sob a guarda dela: a maioria não vira a luz do dia por duzentos anos, a não ser por momentos esporádicos em que tinham sido vendidos por um coleccionador de obscura memória da histórica francesa para outro, acabando por ir parar ali, no museu minúsculo que contava com uma modesta verba para a sua aquisição. Perguntei se alguém havia assumido as funções de Elaine; o vice-prefeito negou com a cabeça. Alguém fizera um inventário do seu escritório? Examinara os seus papéis? Eu podia ver?» In Tom Reiss, O Conde Negro, 2012, Texto Editores, 2014, ISBN 978-972-474-661-6.

Cortesia de TEditores/JDACT