terça-feira, 6 de junho de 2017

O Fardo da Nobreza. Donna Leon. «… a chuva e a neve caíram, depois jorraram para dentro, corroendo os plásticos e os pisos, e a cada ano que se passava o telhado se inclinava cada vez mais ébrio em direcção ao solo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não havia nada de particularmente notável no terreno de cem metros quadrados de mato seco no limite de um vilarejo ao sopé das Dolomitas. Terminando num talude, era coalhado de carvalhos prontos para virar lenha se assim quisessem, o que serviu de argumento para pôr o preço lá em cima quando o terreno e a casa bicentenária nele erigida foram colocados à venda. Ao norte, uma montanha de face escarpada projectava-se sobre a pequena cidade de Ponte nelle Alpi; a cem quilômetros ao sul, Veneza, longe o suficiente para ter qualquer influência sobre a política ou os costumes locais. Os habitantes dos vilarejos relutavam em falar italiano, ficando mais à vontade com o dialeto bellunese. O terreno não era cultivado havia cerca de cinquenta anos, tempo em que a casa de pedra permanecera vazia. As enormes telhas que compunham o telhado tinham mudado com a passagem do tempo e as bruscas variações de temperatura, talvez até mesmo devido a um ou outro tremor de terra que atingiu a região nos séculos em que o telhado protegeu a casa da chuva e da neve, o que já não fazia mais, pois muitas dessas telhas jaziam no chão, deixando os pavimentos superiores expostos ao mau tempo. Em razão de a casa e a propriedade serem o centro de um inventário litigioso, nenhum dos oito herdeiros se dera ao trabalho de consertar os vazamentos, temerosos de jamais recuperarem as poucas centenas de milhares de liras que custariam os reparos. Com isso, a chuva e a neve caíram, depois jorraram para dentro, corroendo os plásticos e os pisos, e a cada ano que se passava o telhado se inclinava cada vez mais ébrio em direcção ao solo.
O terreno fora abandonado pelos mesmos motivos. Nenhum dos herdeiros queria gastar tempo ou dinheiro cultivando a terra, nem queria colocar em risco o seu direito ao ser visto fazendo uso irregular da propriedade. As ervas daninhas floresceram, fortalecidas pelo facto de os últimos encarregados de cultivar a terra terem usado como adubo por décadas os dejectos de seus coelhos. Foi a perspectiva de dinheiro estrangeiro que resolveu o litígio: dois dias depois de um médico alemão aposentado ter feito uma oferta pela casa e pelo terreno, os oito herdeiros reuniram-se na residência do mais velho. Antes que a noite acabasse haviam concordado unanimemente em vender tudo; em seguida, decidiram não vender até que o estrangeiro tivesse dobrado a sua oferta inicial, o que constituiria o quádruplo do que qualquer um dos moradores da região estaria disposto a, ou teria condições de, pagar.
Três semanas antes de o acordo ser finalizado, os andaimes foram erguidos e as telhas centenárias e artesanais que restavam foram arremessadas para baixo, espatifando-se no quintal. A arte de instalar as telhas tinha morrido com os artesãos que sabiam como cortá-las, assim, elas foram substituídas por retângulos moldados de cimento pré-fabricado que guardavam uma vaga semelhança com as telhas de terracota. Tendo o médico contratado o herdeiro mais velho como seu capataz, a reforma foi rápida; e, por se estar na província de Belluno, foi realizada a contento e honestamente. Em meados da Primavera, a reforma da casa estava quase terminada, e, perto dos primeiros dias de Verão, o novo proprietário, que passara a sua vida profissional enfurnado em centros cirúrgicos muito iluminados e supervisionava a reforma por telefone e fax a partir de Munique, passou a concentrar os seus pensamentos na criação do jardim com que havia sonhado por anos.
A memória de um vilarejo é perene, e lembrou-se que o antigo jardim ficava ao longo de uma fila de nogueiras nos fundos da casa, o que fez Egidio Buschetti, o capataz, decidir arar ali. A terra não tinha sido cultivada pela maior parte de sua existência, o que levou Buschetti a calcular que devia passar o tractor por ali duas vezes, a primeira para cortar as ervas daninhas de um metro de altura, a segunda para sulcar para a superfície o rico solo em repouso. A princípio, Buschetti achou que era um cavalo, lembrava que os antigos proprietários tinham dois, de modo que manteve o tractor em movimento até alcançar o ponto que estabelecera como limite do terreno. Forçando o enorme volante, deu meia-volta com o tractor e voltou por onde tinha vindo, orgulhoso da rectidão dos sulcos, contente de estar novamente ao sol, feliz com os sons e o ritmo do trabalho e agora certo de que a Primavera tinha chegado. Então viu o osso projetando-se retorcido do sulco que tinha acabado de arar, a sua extensão branca visivelmente destacada sobre a terra quase negra. Não, não era comprido o suficiente para ser de um cavalo, e ele não se lembrava de alguém ter criado ovelhas por ali. Intrigado, reduziu a marcha do tractor, como que temendo esmigalhar o osso ao passar por cima dele. 
Pôs a máquina em ponto morto e deixou que parasse. Accionou o travão de mão, desceu do alto assento de metal e caminhou até ao osso erecto que apontava para o céu. Agachou-se para pegá-lo e tirá-lo do trajecto do tractor, mas uma súbita relutância o fez erguer-se novamente e dar uma pancadinha nele com a ponta de sua robusta bota, esperando com isso deslocá-lo. Mas o osso não se movia, então Buschetti voltou até ao tractor para buscar uma pá que mantinha atrás do assento. Quando virou, os seus olhos foram atraídos por uma forma oval brilhante um pouco adiante no fundo do sulco. Não havia crânio de cavalo ou ovelha que pudesse apresentar formato tão arredondado, e nenhum deles o teria encarado com caninos tão afiados, assustadoramente semelhantes aos do próprio Buschetti». In Donna Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-056-7.

Cortesia da CdasLetras/JDACT