terça-feira, 6 de março de 2018

Idade Média. Umberto Eco. «Gradualmente, as trincheiras defensivas transformam-se pouco a pouco em fossos cheios de água que podem ser atravessados por uma ponte levadiça. … na Idade Média não existiram castelos fabulosos»

Cortesia de wikipedia

A Idade Média não é uma época de castelos torreados como os da Disneylândia
«(…) Uma vez reconhecidas as luzes dos tempos escuros, será conveniente restabelecer as suas sombras nos casos em que a vulgata dos meios de comunicação nos tem apresentado uma Idade Média oleográfica, povoada de castelos imaginados pelo romantismo (e por vezes reconstruídos, em vez de restaurados), e como os vemos, enfim (e idealizados) em miniaturas muito tardias (do século XV) como em Très Riches Heures du Duc de Berry. Este fabuloso e espampanante modelo de castelo medieval corresponde mais aos famosos palácios-castelos do Loire, que são da época renascentista. Quem hoje procura na internet artigos sobre o castelo feudal encontra esplêndidas construções com ameias atribuídas (quando o artigo é honesto) aos séculos XII ou XIV, quando não são reconstruções modernas. Com efeito, o castelo feudal consiste numa estrutura de madeira erguida numa elevação do terreno (ou num aterro propositadamente preparado, a mota) e rodeada por uma trincheira defensiva. A partir do século XI, para maior protecção em caso de cerco, são construídas muralhas em volta da elevação e, com frequência, simples paliçadas a delimitar o corte onde, perante o ataque inimigo, podiam refugiar-se os camponeses do território com os seus animais. Os normandos construirão no interior da muralha um torreão ou torre de menagem que, além da sua função defensiva, servia de residência para o senhor e para a guarnição. Gradualmente, as trincheiras defensivas transformam-se pouco a pouco em fossos cheios de água que podem ser atravessados por uma ponte levadiça. Mas é uma evolução lenta. Resumindo, na Idade Média não existiram castelos fabulosos.

A Idade Média não ignora a cultura clássica
Embora tendo perdido os textos de muitos autores antigos (os de Homero e dos trágicos gregos, por exemplo), conhecia Virgílio, Horácio, Tibulo, Cícero, Plínio, o Jovem, Lucano, Ovídio, Estácio, Terêncio, Séneca, Claudiano, Marcial e Salústio. O facto de existir memória destes autores não significa, naturalmente, que fossem do conhecimento de todos. Um destes autores podia, por vezes, ser conhecido num mosteiro com uma biblioteca bem fornecida e desconhecido noutros locais. Havia, no entanto, sede de conhecimento e, numa época em que as comunicações pareciam tão difíceis (mas, como vamos ver, viajava-se muito), os doutos procuravam por todos os modos obter manuscritos preciosos. É célebre a história de Gerberto d’Aurillac, que depois será Silvestre II, o Papa do ano 1000, que promete a um seu correspondente uma esfera armilar se ele lhe arranjasse o manuscrito da Farsália de Lucano. O manuscrito chega, mas Gerberto acha-o incompleto e, não sabendo que Lucano deixara a obra por terminar, porque fora convidado por Nero a abrir as veias, envia ao correspondente apenas metade de uma esfera armilar. A história, talvez lendária, poderia ser simplesmente engraçada, mas revela que também naquela época estava muito desenvolvido o amor à cultura clássica. O modo como eram lidos os autores clássicos está, contudo, vergado aos desígnios de uma leitura cristianizadora, como é exemplo o caso de Virgílio, lido como um mago capaz de fazer vaticínios e que na Écloga IV teria previsto o advento de Cristo.

A Idade Média não repudiou a ciência da Antiguidade
Uma interpretação com raízes nas polémicas positivistas do século XIX defende que a Idade Média rejeitou todos os achados científicos da Antiguidade Clássica para não contradizer a letra das Sagradas Escrituras. É verdade que alguns autores patrísticos tentaram fazer uma leitura absolutamente literal da Escritura no ponto em que diz que o mundo está feito como um tabernáculo. Por exemplo, no século IV, Lactâncio (nas Institutiones Divinæ) opõe-se com base nisso às teorias pagãs da rotundidade da Terra, até porque não podia admitir a ideia da existência das regiões antípodas, onde as pessoas teriam de andar de cabeça para baixo. Ideias análogas tinham sido defendidas por Cosmas Indicopleustes, um geógrafo bizantino do século VI que, pensando também no tabernáculo bíblico, na sua Topografia Cristiana, descrevera minuciosamente um cosmo de forma cúbica, com um arco a cobrir o pavimento plano da Terra». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.

Cortesia PdQuixote/JDACT