sábado, 24 de março de 2018

Papas. Imperadores e Hereges na Idade Média. José D’Assunção Barros. «… já Salviano comporia uma obra, intitulada Do governo do mundo, para sustentar a ideia de que os desregramentos dos cristãos é que haviam atraído as invasões bárbaras»

Cortesia de wikipedia e jdact

Interlúdio: algumas leituras sobre a passagem que remonta à sua própria época
«(…) Diante das diversas avaliações produzidas na própria época sobre o fim do Império Romano como decorrente das invasões de povos não latinos, e também das avaliações sobre o declínio do Império como decorrentes da corrupção dos costumes, ou mesmo diante da consideração de pretensos desdobramentos negativos que se julgava que deveriam ser creditados à adopção do cristianismo como religião oficial do Império, pode-se dizer que estas interpretações produzidas na própria época não deixam de ser precursoras de posições historiográficas que se fortaleceriam depois. Os saques de Roma e a crise do fim do Império, enfim, ofereceram-se como verdadeira arena para combate intelectual entre defensores do paganismo ou do cristianismo que desejavam culpar o campo oposto pelos eventos mais alarmantes que iam se produzindo no Império. As várias posições possíveis encontraram argutos defensores. Já Montesquieu, nas suas Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos, ilustrava esta pequena arena de ideias que se organizara na própria época dos acontecimentos mais traumáticos do último Império Romano mencionando exemplos das três posições clássicas: Orósio, Salviano e Agostinho. Assim, enquanto Orósio busca situar-se em uma posição relativizada no debate entre cristianismo e paganismo, escrevendo uma história para provar que em todos os tempos existiram desgraças tão grandes quanto aquelas de que se queixavam os pagãos (mas já induzindo a ideia de que a medida da ocorrência das desgraças é o afastamento em relação a Deus e, em última instância, em relação ao cristianismo), já Salviano comporia uma obra, intitulada Do governo do mundo, para sustentar a ideia de que os desregramentos dos cristãos é que haviam atraído as invasões bárbaras.
A posição de Santo Agostinho foi bem singular. Interessado em livrar o cristianismo de qualquer acusação ou responsabilidade pela queda do Império, já que à sua época autores pagãos insinuavam ou argumentavam bastante abertamente em torno da ideia de que a sujeição de Roma por povos pagãos revelava claros sinais de que o Império estaria sendo punido pelos deuses por sua adopção do cristianismo, ocupa-se em trabalhar com a ideia de um declínio que teria sido provocado precisamente pela corrupção dos costumes pagãos, que de acordo com sua argumentação já viria de tempos anteriores. A concretização maior desta argumentação, a par de uma extensa tentativa de demolir a filosofia não cristã e todas as críticas ao cristianismo, foi a obra intitulada Cidade de Deus, e nela a tese de um declínio da civilização romana herdada dos tempos do paganismo encontra um grande resguardo.
As duas posições, exemplificadas à própria época pelo contraste entre Salviano e Santo Agostinho, seriam retomadas constantemente em épocas posteriores, a do abate externo (com ou sem a punição de Deus ou dos deuses) ou a do declínio interno, e a interpretação de Maquiavel pode ser evocada como um exemplo de análise que novamente coloca os ataques bárbaros na centralidade do processo. Gibbon, por outro lado, já escrevendo em 1776, reformula a seu modo a ideia de um declínio interno, e sugere em certas passagens que o abuso do cristianismo teria exercido um papel considerável no declínio do Império, embora procure formular também a hipótese de que o declínio de Roma teria sido consequência natural e inevitável de sua desmedida grandeza

Novos campos e novas leituras contemporâneas: economia e sociedade
Conforme vimos até aqui, as posições de que os fins do Império Romano estão relacionados ora às agressões e penetrações dos povos não latinos, ora a factores internos, que podiam ir desde aspectos sociais a religiosos, foram recorrentes num longo período que principia à própria época dos acontecimentos mais marcantes que anunciaram a queda ou o declínio do Império Romano. Essas posições, de lado a lado, atingem os séculos XIX e XX com a célebre querela sobre o assassinato ou a morte natural do Império Romano. Mas logo abririam espaço para outras proposições, mais tendentes a enxergar a transformação de um período em outro, do que o fim taxativo de um grande período da história. Estas novas proposições, naturalmente, são beneficiadas precisamente pela multiplicação de novos campos históricos, para além da história política tradicional». In José D’Assunção Barros, Papas, Imperadores e Hereses na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN 978-853-264-454-1.

Cortesia EVozes/JDACT