quinta-feira, 29 de março de 2018

Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês. Reflexões historiográficas. José D’Assunção Barros. «Daí o papel simbólico do marido ciumento, traído, ou desprezado secretamente pela esposa em favor do amante cortês»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O Amor Cortês pode ser apontado como um momento inovador na complexa história humana dos modos de sentir e de suas formas de expressão. A sua emergência através da poesia trovadoresca deixou tão indeléveis marcas no repertório ocidental de possibilidades estéticas de expressar e vivenciar o amor, e na própria imaginação do homem ocidental pertencente à temática amorosa, que frequentemente se aponta o despontar dos trovadores medievais no século XII como o instante mesmo da invenção do amor romântico no Ocidente. Em que consistia, antes de mais nada, este Amor Cortês que rapidamente se difundiu na Europa a partir das cantigas dos trovadores do sul da França, das suas próprias vidas, ou dos romances que tiveram na história de Tristão e Isolda o seu exemplo mais extremado e no Lancelote de Chrétien de Troyes a sua exposição mais sistemática? Antes de tudo, conheçamos as personagens fundamentais do Amor Cortês. No centro de tudo, um Amador que se entrega de corpo e alma a uma paixão incontrolável e ao dedicado serviço amoroso da mulher amada. E ela: uma Dama que, aos olhos do amante apaixonado, é a mais bela e perfeita de todas as mulheres. Uma Dama, deveremos acrescentar, que é em geral inatingível, ou por estar espacialmente inacessível (talvez por morar num país distante) ou, quem sabe neste caso um obstáculo ainda mais intransponível, por ser socialmente inacessível. Nesta última situação aparece eventualmente um terceiro personagem: o marido da dama, já que com alguma frequência a mulher eleita pelo trovador provençal ou pelo herói do romance cortês é casada ou comprometida (via de regra com um poderoso senhor feudal). Por fim, os personagens coadjuvantes: em alguns casos um confidente da confiança do trovador apaixonado, e em outros casos os delactores, os aduladores, os intrigantes, os maledicentes da vida amorosa e os bisbilhoteiros, globalmente classificados como losengiers pelas cantigas trovadorescas, que estão sempre prontos a denunciar o caso de amor ou a difamar os seus envolvidos. Envolvendo tudo, um Amor tão extremado quanto ambíguo, trazendo no mesmo movimento uma indisfarçável carga de erotização e uma dimensão idealizada, ao mesmo tempo em que carrega a mistura dramática que faz com que este amor subtil tanto enobreça e ensine aquele que ama, como o empurre tragicamente em direcção ao sofrimento e até à morte. Completam o conjunto de sentimentos que o Amor Cortês envolve o desejo, maior do que tudo no mundo, mas irrealizável sob pena de que se acabe o próprio amor, e o perigo de que este amor seja descoberto, e que isto acarrete no fim da relação amorosa ou abale a reputação da dama.
Todos estes elementos habitam o plano da sensibilidade e, talvez pela primeira vez com tal intensidade, ameaçam trazer o sentimento para um lugar destacado no cenário medieval, acima mesmo da fé religiosa, da razão erudita, do utilitarismo quotidiano. Conclamar uma autonomia dos sentimentos implica naturalmente na possibilidade de uma nova proposta de leitura das relações entre os dois sexos, relações que, do ponto de vista da cortesia, não deveriam ser mais regidas exclusivamente pela força, pelo instinto, pelo interesse, pelo acomodamento entediante. Não é de se estranhar que o Amor Cortês tenha apresentado uma decisiva faceta anti-matrimonial, já que o casamento era precisamente o território da sujeição do feminino pelo masculino, do acomodamento do indivíduo aos interesses sociais e familiares, da tutela religiosa através do sacramento. Daí o papel simbólico do marido ciumento, traído, ou desprezado secretamente pela esposa em favor do amante cortês. Este marido, entrincheirado de dentro do casamento oficial, representa o mundo da ordem contra o qual se insurge a primazia dos sentimentos proposta pelo Amor Cortês». In José D’Assunção Barros, Os Trovadores Medievais e o Amor Cortês, Reflexões historiográficas, 1995, revista Alethéia, UFG, Abril/Maio, 2008.

Cortesia de RAlethéia/JDACT