terça-feira, 13 de março de 2018

Poesia. Fernando Namora. «Amanhã, terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros e o espectáculo da morgue morando durante dias nos teus sentidos gorados»

Cortesia de wikipedia e jdact

A mais bela noite do mundo
«Hoje será o fim!

Hoje
 nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!

Nem o luar, plano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
 menino! Acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores, o dia!

Menino! Recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!

(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).

Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua…
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.

Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.

(…)

Hoje,
será o fim!

Hoje,
nem a sombra do que há-de vir,
nem os mestres, nem os amigos, nem os livros,
nem a fragilidade dos meus pés
feitos de barro e cansaço!
Todas as minhas revoltas domadas,
todos os meus gestos em meio
e as minhas palavras sufocadas
terão a sua hora de viver e amar!

Hoje,
nem o cadáver a sorrir na morgue,
nem as mãos que ficaram angustiosas,
arrepiadas
no seu medo de findar!

Hoje,
será a mais bela noite do mundo!»

Poema de Fernando Namora, in “Mar de Sargaços

Cortesia de Portal da Literatura/JDACT