sexta-feira, 2 de março de 2018

O complexo religioso e os baptistérios de Mértola na Antiguidade Tardia. Virgílio Lopes. «Um pequeno espigão serviria para a fixar numa empena ou janela. Nessa mesma área foi recolhido o fragmento de uma possível mesa de altar»

Cortesia de wikipedia e jdact

O complexo religioso
«(…) Este baptistério tem algumas semelhanças técnicas e formais com exemplares da França mediterrânica, do Norte da Itália e de Cartago na Tunísia, todos datados entre os séculos IV e VII d.C.. Contudo, é no baptistério de Ljubljana (Emona, Eslovénia) que são mais notórias as semelhanças construtivas, tendo os autores que estudaram este conjunto baptismal e o pórtico anexo, situado a sua cronologia por volta do século V d.C.. Na costa italiana da Ligúria um complexo baptismal, também com elementos semelhantes ao de Mértola, é atribuível a meados do mesmo século. Associado ao espaço baptismal existe um significativo conjunto musivo, de que fazem parte várias representações mitológicas entre as quais, é de realçar no deambulatório do baptistério, um Belerofonte cavalgando o Pégaso para matar a Quimera e, no longo corredor porticado, dois leões afrontados e várias cenas de caça com um cavaleiro empunhando um falcão. Procurando os paralelos para estas representações, não podemos deixar de referir uma pequena capela perto de Hergla, na Tunísia, onde foi descoberto um mosaico em que também são representados dois leões afrontados e uma cena de caça com falcoaria, conjunto datado do século VI d. C..
Não é de excluir que tenha sido a mesma equipa de mosaístas, oriundos certamente do Mediterrâneo oriental, a executar todo este trabalho. Se a falta de paralelos bem datados inviabiliza uma cronologia segura, leituras estratigráficas e traços estilísticos permitem atribuir esta obra à primeira metade do século VI d.C.. Nessa época, a cidade de Myrtilis e os seus comerciantes, estão em contacto com todos os portos do Mediterrâneo nomeadamente com o Próximo Oriente de onde são originários vários personagens sepultados na Basílica Paleocristã do Rossio do Carmo. A organização do espaço litúrgico em torno deste baptistério assemelha-se à dos exemplares conhecidos, ou seja, o sacramento da iniciação cristã começa com o despojar das vestes, desenvolvendo-se em seguida os ritos pré-baptismais: os catecúmenos iriam em cortejo pelo pórtico entrando no baptistério pela porta oeste, donde desceriam pelas escadas ocidentais até ao interior da fonte baptismal, para subir, já baptizados, pelo lado oriental e serem recebidos pelo bispo, possivelmente na zona da abside. A procissão dos catecúmenos culminava com a Eucaristia, onde se procedia à Primeira Comunhão.
Durante a cerimónia baptismal, o compartimento existente a norte do baptistério poderia servir de sala de espera ou vestiário, onde os diversos grupos, crianças, homens e mulheres, aguardavam a sua vez para aceder ao baptistério, sentados, possivelmente, em bancos de madeira. Tendo em conta que o baptismo é um ritual anual, este conjunto arquitectónico do baptistério poderia ser utilizado, na restante parte do ano, como catecúmeno, para preparar os aspirantes a cristãos em determinados períodos, podendo até ter outras funções que não se prendessem com o sacramento baptismal.
A sul deste conjunto situa-se uma possível basílica civil, ligada ao funcionamento do forum romano, posteriormente integrado no complexo religioso, a prová-lo estão os restos de mosaicos que naquele local existiram e que apresentavam motivos idênticos aos restantes encontrados no complexo baptismal. Este espaço foi escavado por uma equipa do CAM no mesmo local onde, em finais do século XIX, Estácio Veiga teria procedido a uma intervenção arqueológica e retirado um fragmento de mosaico designado por mosaico da tartaruga. Trata-se de uma construção de planta rectangular, com uma abside semicircular orientada a oeste. Não se sabe se esta abside teria uma outra simétrica no lado leste, pois os dados arqueológicos para suster esta hipótese são inexistentes. A escavação da plataforma do antigo forum, e também a desmontagem de estruturas posteriores, sobretudo pertencentes ao bairro islâmico, onde, por sua vez, se implantaram os enterramentos medievais e modernos, tem proporcionado a descoberta de um interessante conjunto de edificações onde sobressaem a sua decoração musiva e os elementos de uma arquitectura decorativa. Aliás, o desmonte e a análise minuciosa de um bloco de opus caementicium que pertenceu, certamente, ao enchimento de uma abóbada que cobria a abside do baptistério, permitiu encontrar um pequeno fragmento de cerâmica sigillata foceana tardia, cuja cronologia vai de meados do século V a meados do século VI d.C.. Suponho, portanto, que a data de construção, ou as últimas obras realizadas nesta importante edificação, não deve afastar-se muito deste leque cronológico.
Outro elemento proveniente das campanhas arqueológicas de 1981, e que reforça a convicção da presença cristã neste edifício, é o fragmento de uma cruz pátea inscrita em círculo. Esta peça de mármore cinzento é formada por um quarto de círculo e apenas um braço que permite, no entanto, reconstituir o conjunto: uma coroa de louros simplificada, em moldura de entalhes helicoidais, que envolve uma cruz de braços iguais aberta em gelosia. Um pequeno espigão serviria para a fixar numa empena ou janela. Nessa mesma área foi recolhido o fragmento de uma possível mesa de altar, em mármore branco de grão fino, com o comprimento máximo de 30 cm, largura máxima 29 cm, espessura máxima 8 cm, reutilizada nas paredes da casa islâmica implantada na zona do baptistério. A placa retangular era envolvida por uma moldura em forma de meia cana, separada no ângulo por uma palmeta. Pelo tipo de material, e pelo local do aparecimento, penso ser provável a sua pertença ao mobiliário litúrgico. Um fragmento de pé de altar de mármore branco de grão fino que está trabalhado nas suas quatro faces com o que parece ser a base de cruzes páteas, com quatro ou cinco bases que Palol situa no século VI em que denominou como altares paleocristãos. Sendo uma forma comum em todo o Mediterrâneo, mesa de suportes múltiplos, possui paralelos em Mérida. Ou o fragmento de pia de mármore branco. Trata-se de parte de uma peça de forma semiesférica com pega lateral. O bordo é plano e apresenta uma decoração constituída por um encordoado entre dois filetes. A superfície interior e exterior apresenta-se polida. Pode tratar-se de uma pia ou almofariz. Peças semelhantes foram encontradas em Mérida e em Córdoba. Estes autores consideram este tipo de peças como tendo servido de almofariz ou moinho, contudo nada invalida que tenha sido reutilizadas posteriormente para outros fins». In Virgílio Lopes, O complexo religioso e os baptistérios de Mértola na Antiguidade Tardia, Revista Medievalista, Número 23, Janeiro-Junho 2018, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT