quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Alice Hoffman. As Mulheres do Deserto. «Quanto mais os romanos nos prendiam por crimes contra a sua lei, mais lutávamos entre nós mesmos, incapazes de nos decidir sobre uma única linha de acção»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando os romanos atacaram o terceiro muro, o nosso povo foi forçado a fugir daquela parte do Templo. Em seguida, a legião derrubou o segundo muro. Ainda não foi o bastante. O grande Tito, líder militar de toda a Judeia, passou a construir quatro rampas de cerco. Nosso povo as destruiu com fogo e pedras, mas o ataque dos romanos aos muros do Templo havia enfraquecido as nossas defesas. Não muito tempo depois conseguiram abrir uma brecha. Os soldados entraram no labirinto de muros que cercavam o nosso local mais sagrado, correndo como ratos, os escudos erguidos para o alto, as túnicas brancas abrasando-se com o sangue. O Templo sagrado estava sendo destruído pelas suas mãos. Depois que isso acontecesse, a cidade também, obrigada a acompanhá-lo, tombaria de joelhos como um prisioneiro comum, pois sem o Templo não haveria lev ha-olam, o mundo perderia o centro, não restando nada por que lutar. O anseio por Jerusalém era um fogo que não se extinguia. Existia uma faísca dentro do mais sagrado dos lugares santos que fazia as pessoas quererem possuí-lo, e o que mais desejam muitas vezes os próprios homens destroem. À noite, os muros que tinham sido feitos para durar uma eternidade gemeram e oscilaram.

Quanto mais os romanos nos prendiam por crimes contra a sua lei, mais lutávamos entre nós mesmos, incapazes de nos decidir sobre uma única linha de acção. Talvez por saber que não conseguiríamos triunfar sobre o seu poderio, voltávamo-nos uns contra os outros, divididos por ciúme, desunidos pela traição, a nossa vida tornou-se um emaranhado sombrio de medo. As vítimas muitas vezes atacam umas às outras, como galinhas num galinheiro, trocando bicadas frenéticas. Nós fizemos o mesmo que elas. Não só o nosso povo foi sitiado pelos romanos, mas as pessoas entraram em guerra umas contra as outras. Os sacerdotes foram condescendentes, pendendo para o lado de Roma, e os que lhes faziam oposição eram declarados ladrões e bandidos, meu pai e seus amigos entre os opositores. Os impostos eram tão altos que os pobres não podiam mais alimentar os filhos, enquanto os que se aliaram a Roma prosperavam e enriqueciam. As pessoas testemunhavam contra os próprios vizinhos, roubavam umas das outras e fechavam a porta aos necessitados. Quanto mais desconfiávamos uns dos outros, mais éramos derrotados, divididos em grupos hostis, quando na verdade éramos um corpo só na crença em Adonai, éramos os filhos e as filhas do reino de Israel.

Durante os meses que antecederam a destruição do Templo, instalou-se o caos enquanto enfrentávamos os nossos inimigos. Fizemos todo o esforço para vencer aquela guerra, mas, assim como Deus criou a vida, também gerou a destruição. Durante o furioso mês vermelho de Av, corpos inchados lotavam o kidron, a ravina profunda que separava a cidade do cintilante Monte das Oliveiras. O sangue de homens e animais formava lagos escuros nos nossos lugares mais sagrados. O calor era estranho e implacável, como se a maldade da terra se refletisse contra nós, um espelho dos nossos pecados. Dentro dos salões mais secretos do Templo, o ouro era fundido e partilhado; desaparecia, roubado do mais santo dos lugares, para nunca mais ser visto.

Nem uma única brisa soprava. A temperatura subira com a desordem, do chão para cima, e os tijolos que pavimentavam as estradas romanas eram tão quentes que queimavam os pés das pessoas, enquanto os desesperados buscavam um paraíso seguro, um estábulo, uma câmara abandonada, até mesmo um espaço de pedra fria no interior do forno de um padeiro. Os soldados da décima legião, que seguiam a insígnia do javali, plantaram as suas bandeiras sobre as ruínas do Templo, com pleno conhecimento de que isso era uma afronta para nós, pois atiravam na nossa cara um animal que considerávamos impuro. Os soldados eram como os próprios javalis, irresponsáveis, cruéis. Corriam por todo o lado, matando galos brancos do lado de fora das sinagogas, tratando lugares que serviam como bet kenesset e bet tefilliah, casas tanto de reunião como de oração, como um insulto e uma maldição». In Alice Hoffman, As Mulheres do Deserto, Editora Planeta, 2011, 2013, ISBN 978-854-220-122-2.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

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