quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

As Mulheres do Deserto. Alice Hoffman. «A minha pele estava queimada, as minhas mãos, esfoladas. Entreguei-me ao deserto, curvando-me à sua voz poderosa»

Cortesia de wikipedia e jdact

Verão, 70 d. C.

«Viemos como pombos através do deserto. Num tempo em que não existia nada além da morte, éramos gratos por qualquer coisa, e muito gratos por tudo quando acordávamos para mais um dia».

«Caminhamos por tanto tempo que me esqueci do que era viver entre quatro paredes ou dormir toda uma noite. Nessa época, perdi tudo o que poderia ter possuído caso Jerusalém não tivesse caído: um marido, uma família, um futuro para chamar de meu. A minha infância desapareceu no deserto. A pessoa que fora um dia deixou de existir quando me vesti de branco e a poeira subiu em nuvens. Éramos nómadas, deixando para trás camas e pertences, tapetes e vasos de bronze. O nosso lar então era a casa do deserto, preta à noite, brutalmente branca ao meio-dia.

Dizem que a beleza mais verdadeira encontra-se na terra mais árida e que Deus pode ser encontrado lá por quem tem os olhos abertos. Mas os meus olhos estavam fechados contra os ventos da mudança, que podem cegar uma pessoa num instante. A própria respiração era um milagre quando as tempestades vinham rodopiando por toda a terra. A voz que surge do silêncio é algo que ninguém é capaz de imaginar até que seja ouvida. Ela ruge quando fala, mente para convencê-lo, rouba-lhe o pouco que tenha e o deixa sem uma única palavra de conforto. O conforto não pode existir em tal lugar. Só o que é brutal sobrevive. O que é astúcia subsiste até de manhã.

A minha pele estava queimada, as minhas mãos, esfoladas. Entreguei-me ao deserto, curvando-me à sua voz poderosa. Por onde quer que andasse, o meu destino andava comigo, costurado aos meus pés com linha vermelha. Tudo o que nunca será já foi escrito muito antes que aconteça. Não há nada que possamos fazer para impedi-lo. Não poderia seguir noutra direcção. As estradas de Jerusalém levavam apenas a três lugares: a Roma, ao mar ou ao deserto. Meu povo tornara-se errante, como fora no início dos tempos, novamente expulso. Segui meu pai para fora da cidade porque não tinha escolha. Nenhum de nós tinha, verdade seja dita.

Não sei como tudo começou, mas sei como terminou. Ocorreu no mês de Av, cujo signo é Arieh, o leão. É um mês que para o nosso povo significa a destruição, um período em que as pedras do deserto tornam-se tão quentes que não se pode tocá-las sem queimar os dedos, em que a fruta murcha nas árvores antes de amadurecer e as sementes chacoalham no seu interior, em que o céu torna-se branco e a chuva não cai. O primeiro Templo foi destruído nesse mês. As ferramentas significavam armas e não puderam ser usadas na construção do mais sagrado dos lugares santos; por isso, o grande guerreiro, o rei David, foi proibido de construir o Templo, porque conhecera os males da guerra. Em vez disso, a honra recaiu sobre seu filho, o rei Salomão, que invocou o shamir, um verme capaz de atravessar a pedra, e assim criou glória a Deus sem o uso de ferramentas de metal.

O Templo foi construído como Deus decretara que deveria ser, livre de derramamento de sangue e da guerra. Seus nove portões foram recobertos com ouro e prata. Lá, no mais sagrado dos lugares, ficou a Arca que guardava a aliança do nosso povo com Deus, um baú feito com a melhor madeira de acácia, decorado com dois querubins dourados. Mas, apesar da grandiosidade, o primeiro Templo foi destruído, o nosso povo, e Livros para a Babilónia. Entretanto, retornaria após setenta anos para reconstruí-lo no mesmo local em que Abraão se dispusera a oferecer o filho Isaac em sacrifício ao Todo-Poderoso, em que o mundo fora originalmente criado.

O segundo Templo resistiu por centenas de anos como a morada da palavra de Deus, o centro da criação no centro de Jerusalém, embora a Arca em si tivesse desaparecido, talvez na Babilónia. Mas então o tempo de derramamento de sangue impôs-se a nós uma vez mais. Os romanos quiseram tudo o que tínhamos. Chegaram até nós depois de invadirem inúmeras terras com as suas legiões imensas, pretendendo não apenas conquistar, mas humilhar, reivindicar não só a nossa terra e o nosso ouro, mas a nossa humanidade». In Alice Hoffman, As Mulheres do Deserto, Editora Planeta, 2011, 2013, ISBN 978-854-220-122-2.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

JDACT, Alice Hoffman, Literatura, Deserto,