sábado, 12 de dezembro de 2020

O Santuário de NSA de Aires. 1743 1792. Raquel Alexandra AR Seixas. «Deo principio o Lavrador à obra em hum sitio, que ficava distante do curral, julgando-o por mais oportuno: porém a Senhora que havia elegido o do seu apparecimento, dispoz, que tudo o que se havia obrado no primeyro dia»

Cortesia de wikipedia e jdact

Arquitectura e Devoção

«(…) Por que motivo a lenda da Senhora de Aires reproduz tanto a versão do achamento, como da aparição? Com efeito, ambas têm propósitos distintos, se a primeira apela para a antiguidade do culto, a segunda confere à imagem pétrea um valor sobrenatural. O trinómio, Senhora de Aires / Eremita de Arem / Almançor, tem a peculiaridade de sacralizar historicamente o lugar e a imagem, ao situar a veneração nos tempos antecedentes à ocupação árabe. Por sua vez, o milagre da aparição torna palpável a presença da Virgem e a Revelação Divina, pois las apaiciones se presentan como una manifestación sensible de lo sobrenatural. A aparição outorga à imagem esculpida um significado transcendente, equiparando-a às relíquias dos santos; mediante uma aparição a imagem passa a representar e a suportar uma presença real, uma epifania.

A intensificação do discurso aparicionista e dos achamentos, na Europa Católica, conduziu à intervenção dos altos dignitários da Igreja. No Concílio Lateranense (1516) e no Concílio de Trento (1545-1563) tomou-se medidas restritivas quanto às aparições e revelações, determinando-se que não se devia admitir nenhum milagre sem o reconhecimento e autorização dos bispos. Todavia, a predisposição humana para a criação e aceitação de novos milagres levou Bento XIV, ainda no século XVIII, a reiterar que a Igreja só mediante um atento exame é que consentiria a legitimação de um novo milagre. Pese embora a limitação efectuada nas reuniões conciliares, a proliferação dos milagres marianos não refreou, pelo contrário, fortaleceu-se. Na verdade, o movimento reformista católico deu um enorme contributo ao florescimento do culto mariano e à proliferação de santuários erigidos sob a sua evocação, durante os séculos XVI e XVII, em resposta às críticas protestantes e à relativização do papel de Maria no Milagre da Salvação.

A inscrição do jesuíta António Franco, de 1690, é omissa quanto à identificação do lavrador que encontrou a imagem de Nossa Senhora de Aires no acto da lavoura. Foi, precisamente, fr. Agostinho o primeiro a identificar o intermediário humano, entre a população e o sagrado, com o rico lavrador Martim Vaqueiro. E, na senda de outros lendários, a difundir a ideia de que o fundador do templo estava enterrado no local transcrevendo, para o efeito, a inscrição sepulcral que pavimentava o presbitério: esta capella, & sepultura he de Martim Vaqueyro, Fundador desta casa, da nobre, & antiga geração dos Vaqueyros.

Atendendo à inexistência no local desta lápide, o mais provável é que a sua referência tenha resultado da imaginação do compositor do Santuario Mariano; caso contrário, teria sido integrada na nova construção de 1743 e referida por fr. Francisco Oliveira nas Memorias da Villa de Vianna. Como observa William Christian, estes mediadores são os sucessores dos santos mártires e em certa medida suprem a falta de relíquias corporais dos santuários marianos. Eles contribuem para a consolidação e autenticidade da lenda, ao corporizarem o principal interveniente e beneficiário do milagre da manifestação sagrada. Se o relato da aparição, ideado por fr. Agostinho de Santa Maria, não reuniu muitos apoiantes, o mesmo não se pode dizer da identificação do beneficiário da manifestação divina, daí em diante associado ao rico e nobre lavrador Martim Vaqueiro, o fundador do templo.

A sacralização do espaço e do templo

A escolha do local é um dos pontos determinantes das lendas, é a Virgem que elege o sítio para a sua devoção. Os santuários são edificados em lugares precisos, lugares onde a figura tutelar manifestou o desejo de ser cultuada, quer através da aparição, quer do achamento da imagem sagrada. Para reforçar a ideia do local consagrado multiplicam-se os relatos da persistência da Virgem pelo lugar aclamado, que, no caso de Nossa Senhora de Aires, nos é relatado, uma vez mais, por fr. Agostinho de Santa Maria:

Deo principio o Lavrador à obra em hum sitio, que ficava distante do curral, julgando-o por mais oportuno: porém a Senhora que havia elegido o do seu apparecimento, dispoz, que tudo o que se havia obrado no primeyro dia, se achasse desfeyto no segundo, & continuando a edificação em o segundo, & terceyro em a mesma paragem, lhe succedeo o mesmo, que na primeyra vez. Com que desistindo do seu parecer, se resolveo em edificar a Igreja no mesmo lugar, em que a Senhora lhe havia apparecido. E fez-se em tal fórma, que a cappela mòr se abricou no mesmo Lugar, aonde estava a porta do curral.

A perseverança das Senhoras pelo territorio da gracia, seja por via da destruição dos trabalhos feitos, seja por via das fugas da imagem escultórica, enfatizam o vínculo entre a Virgem e o local e entre o sagrado e a comunidade. Transformam o sítio num espaço de culto permanente, num ponto concreto para a devoção pessoal e colectiva. Lugares distantes da população, geralmente em meios rurais, em áreas propícias ao afastamento do mundo terreno e das tarefas quotidianas; lugares que remetem para a ideia do separado, imanente ao próprio conceito de sagrado, ao procurarem o afastamento do espaço habitado e da convivência humana diária». In Raquel Alexandra AR Seixas, O Santuário de NSA de Aires, Arquitectura e Devoção, 1743 1792, Dissertação de Mestrado em História da Arte Moderna, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, 2013.

Cortesia de FCSH/UNLisboa/JDACT

JDACT, Raquel Alexandra AR Seixas, Monumentos, Religião, Caso de Estudo, História, Alentejo, Cultura e Conhecimento,