quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

O Tempo Morto É Um Bom Lugar. Manuel Jorge Marmelo. «Lavam-se, despem-se, fornicam, dormem, discutem e insultam-se em directo, e fazem absoluta questão de, a cada passo, fazer alarde de uma profunda…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Negro

«O tecto há-de ter sido branco. Agora tem manchas de humidade que parecem uma varicela negra e rachaduras irregulares como veias e artérias de um obscuro sangue. A cor varia consoante a luz que entra pela pequena janela com grades: é uma espécie de branco. Talvez um dos sessenta e sete tons de branco que os esquimós identificam com sessenta e sete palavras diferentes. Eu chamo-lhe branco de tecto de prisão. Passo a maior parte do tempo deitado no catre, de barriga para o ar e com os dedos entrelaçados sobre o peito, indiferente a quase tudo o que sucede no estabelecimento prisional e também ao que acontece do lado de fora dos muros e das paredes da penitenciária. Fixo o olhar no branco do tecto da cela e, aos poucos, convenço-me de que tenho diante de mim um vasto e inóspito deserto de gelo, branco, branco, branco, como um espaço morto dentro de um tempo morto: uma estepe gelada e sem vida. Assemelha-se àquilo que tenho dentro: desolação e desistência.

Talvez por isso me aborreça quase tudo, desde logo a possibilidade de, um dia, me libertarem. Penso nisso e parece-me uma ameaça: a liberdade que é oferecida a quem está lá fora deixou de me interessar e nem sequer é liberdade. O exterior do estabelecimento prisional está cheio de cercas, gaiolas e grades invisíveis, mentais, mais concretas e constrangedoras do que as barras de aço que há na janelota da cela. Por estar colocada num ponto tão alto da parede, junto ao tecto, a janela é de acesso relativamente difícil. Ser-me-ia necessário trepar para cima de uma cadeira se por acaso quisesse ver o que existe do lado de fora da cadeia. Graças às peripécias que me permitiram aceder de pleno direito à tranquilidade do sistema prisional, aprendi, porém, a absoluta conveniência da imobilidade e a enrolar-me numa bola, como qualquer bicho de pêlo, até que a borrasca passe. É por isso que agora fico tanto tempo deitado de barriga para o ar, sem nenhuma curiosidade de saber o que acontece para lá das grades, dos muros e das cercas de arame farpado. Contento-me com o vasto deserto branco do tecto da cela e já não me mobiliza nenhum esforço, nenhuma azáfama. Mas não fui sempre assim. Estava desempregado há mais num dos melhores semanários do país. Farto de marrar contra portas fechadas, acabei por responder a um anúncio classificado para ser ghostwriter de uma celebridade da televisão que pretendia publicar a sua autobiografia. Foi a melhor coisa que podia ter feito. Resolvi o problema das contas de uma forma mais ou menos definitiva e, retido na cela deste estabelecimento prisional, disponho agora de tempo livre para escrever tudo o que me apetece, incluindo o livro que me foi encomendado. O anúncio a que respondi era bastante explícito quanto à natureza do trabalho a realizar: procuravam alguém capaz de escrever, em tom bem-humorado, a autobiografia de uma personalidade da chamada Reality TV, algum dos indivíduos, supus, que participaram num programa em que os concorrentes aceitam ficar fechados numa casa durante vários meses, a mandriar e praticar futilidades sob a vigilância permanente de câmaras de filmar. Assisto, uma vez por ano, à grande final do concurso, quando vou cear a casa dos meus pais na noite de Natal, e costumo experimentar, nessa ocasião, um sentimento que mistura espanto, repulsa e vergonha por estar a ver e a ouvir as inanidades que os participantes fazem e dizem perante milhões de espectadores e das próprias famílias. Lavam-se, despem-se, fornicam, dormem, discutem e insultam-se em directo, e fazem absoluta questão de, a cada passo, fazer alarde de uma profunda ignorância, atestando deste modo o fracasso do ensino público ou o talento da produção do programa para escolher os indivíduos mais boçais que aparecem.

Os honorários do trabalho podiam ser negociados e tinha de me comprometer a ter o livro pronto num prazo de seis meses, para estar à venda quando começasse a ser emitido um novo programa da televisão no qual o autobiografado famoso deveria também participar, ampliando a sua celebridade. Ultrapassada a barreira psicológica que me permitiria escrever a autobiografia de outra pessoa, a qual, ainda por cima, era alguém capaz de exibir a sua intimidade postiça durante meses, ocorreu-me que este podia bem ser o impulso que me faltava para iniciar uma carreira como escritor. Tendo em conta o ponto a que o jornalismo chegou e a idade que tenho, pareceu-me evidente que ia precisar de arranjar outra profissão qualquer, ainda que não esteja minimamente habilitado para fazer mais nada. Abandonei precocemente o curso de Direito, no qual me inscrevi por insistência do meu pai, resumindo-se as minhas aptidões, por isso, a escrever notícias e a perder dinheiro a jogar póquer em casinos clandestinos». In Manuel Jorge Marmelo, O Tempo Morto É Um Bom Lugar, 2014, Quetzal Editores, 2014, ISBN 978-989-722-173-6.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

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