domingo, 11 de julho de 2021

Bizâncio. O Império da Nova Roma. Cyril Mango. «O Império de Roma no Mediterrâneo simplesmente deixara de existir, enquanto o Estado bizantino ficara limitado à Ásia Menor, às ilhas do mar Egeu e a um pedaço da Crimeia e da Sicília»

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Aspectos da Vida Bizantina. Povos e Línguas

«(…) Simultaneamente. com a perda dos Balcãs, o Império sofreu uma amputação mais grave ao ser destituído das províncias orientais e do Sul, num processo em que se poderá distinguir duas fases. Primeiro, entre os anos 609 e 619, os Persas conquistaram toda a Síria, a Palestina e o Egipto. Foram posteriormente derrotados pelo imperador Heraclio e retiraram-se para o seu país. Todavia, alguns anos mais tarde, as mesmas províncias foram invadidas pelos Árabes e, desta vez, perdidas para sempre. Toda a costa norte-africana sucumbiu também ao invasor. O Império de Roma no Mediterrâneo simplesmente deixara de existir, enquanto o Estado bizantino ficara limitado à Ásia Menor, às ilhas do mar Egeu e a um pedaço da Crimeia e da Sicília.

Os Persas iniciaram também outro processo que viria a ter consequências demográficas importantes, ao atacarem Constantinopla através da Ásia Menor. Ao fazê-lo causaram uma devastação imensa. Quando os Árabes sucederam aos Persas e se assenhorearam de todos os territórios até às montanhas do Tauro, também atacaram a Ásia Menor, não uma ou duas vezes, mas praticamente todos os anos. As incursões continuaram durante quase dois séculos. Muitos dos ataques de surpresa não penetraram muito para além da fronteira, mas vários deles estenderam-se até ao mar Negro e ao mar Egeu e alguns chegaram mesmo à própria Constantinopla. No entanto, os Árabes nunca conseguiram ganhar uma base de operações no planalto da Anatólia. Ao invés, o que sucedeu foi que cada vez que entravam, a população local refugiava-se em fortes inacessíveis, dos quais a Ásia Menor está liberalmente provida. Os Árabes passavam entre os fortes, fazendo prisioneiros e pilhando, enquanto os Bizantinos queimavam as colheitas para privar os inimigos das provisões e mantê-los em movimento. As consequências deste processo prolongado são fáceis de imaginar: grande parte da Ásia Menor foi devastada e despovoada quase de forma irreversível.

Deste modo, criou-se uma lacuna demográfica enorme. O Império precisava urgentemente de agricultores assim como de soldados. Para atingir este fim, teria de recorrer a transferências em massa de populações. O imperador Justiniano II, em particular, aplicou esta política em grande escala. Deslocou uma grande parte da população do Chipre para a região de Cízico na costa sul do mar de Mármara. Ao que parece, foi um fracasso: muitos dos imigrantes morreram no caminho, e aqueles que chegaram ao destino pediram mais tarde para ser repatriados. Justiniano II deslocou também uma grande multidão de Eslavos para a Bitínia. Mais uma vez, teve pouca sorte: os trinta mil soldados que organizou de entre aquele grupo para lutar contra os Árabes não foram suficientes para vencer o inimigo, após o que o imperador infligiu represálias cruéis sobre as famílias. No entanto, nos anos 760, sabe-se que duzentos e oito mil eslavos vieram viver para a Bitínia por mútuo acordo. No século VIII ouvimos falar repetidamente da colonização organizada dos Sírios na Trácia. Contudo, os imigrantes mais proeminentes foram os Arménios, muitos dos quais chegaram sem terem sido forçados. Eram soldados excelentes e o Império, privado do seu terreno de recrutamento na Ilíria, precisava muito deles. De facto, a imigração dos Arménios começara no século VI, e a partir do reinado de Maurício formaram a espinha dorsal do exército bizantino. A entrada dos Arménios no Império prolongou-se durante muitos séculos. Muitos estabeleceram-se na Capadócia e em outras partes da Ásia Menor Oriental perto da sua terra natal, outros na Trácia e outros ainda na região de Pérgamo. É impossível avançar com um valor aproximado do seu número. No entanto, ao contrário dos Eslavos, os Arménios ascenderam rapidamente a posições proeminentes, e até mesmo ao trono imperial, dominando a instituição militar durante o Período Médio bizantino. Desta forma, se nos situarmos mais ou menos na altura em que o Império iniciou o lento percurso da sua recuperação, digamos, em fins do século VIII, encontramos a população que havia sido agitada tão minuciosamente dispersa, que é difícil dizer que grupos étnicos viviam onde e em que números. Afirma-se muitas vezes que afastando, por muito doloroso que seja, os principais elementos que não falavam grego, tais como os Sírios, os Egípcios e os Ilírios, o Império tomara-se mais homogéneo. Também se afirma que os que não eram gregos foram gradualmente sendo assimilados ou helenizados através da actuação da Igreja e do exército, o que, de resto, se verificou particularmente com as populações indígenas da Ásia Menor, assim como com os Eslavos no Peloponeso e noutros locais da Grécia. Poder-se-á aconselhar o leitor mais crítico a encarar estas generalizações com alguma cautela. É evidentemente verdade que após a queda do latim, o grego passara a ser a única língua oficial do Império, pelo que para a aprender se tomara necessário seguir uma carreira de negócios ou de comércio. Nem o arménio nem o eslavónio alguma vez suplantaram o grego como meio de comunicação geral. Também é verdade que, a longo prazo, o eslavónio morrera na Grécia e na Bitínia, e se se falou algum arménio na Trácia, tanto quanto temos na memória, não terá sido pelos descendentes dos colonos que lá se estabeleceram no século VIII. Mas depois também se sabe que o grego sobrevivera na Ásia Menor continuamente apenas no Ponto e numa pequena parte da Capadócia, ao passo que ter-se-á praticamente extinto na parte oriental do subcontinente até à sua reintegração pelos imigrantes nos séculos XVIII e XIX. Não discutiremos a última observação de que a Ásia Menor Ocidental não falou predominantemente grego durante a Idade Média». In Cyril Mango, Bizâncio, O Império da Nova Roma, 1980, Edições 70, 2008, ISBN 978-972-441-492-8.

Cortesia de E70/JDACT

JDACT, Cyril Mango, História, Cultura e Conhecimento,