sábado, 3 de julho de 2021

Deborah Moggach. A Febre das Tulipas. «O que tens aí?, diz ela. Deixa-me ver. O que queres, Maria, meu patinho? E baixa a cesta ao nível da anca. E se fosse uma bela e gorda enguia?»

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Sophia

«(…) Já nos vejo na tela: Cornelis, em fundo negro, com o seu colarinho de renda branca, a barba mexendo-se enquanto come; o arenque jazendo no meu prato, de pele rasgada e brilhante deixando à mostra a carne; os lábios entreabertos do meu pão. Uvas roliças e espessas à luz da vela; o castiçal de estanho derramando uma luz opaca. Já nos vejo: sentados à mesa, imóveis, os nossos momentos fixados antes de tudo mudar. Depois do jantar ele costuma ler-me a Bíblia: toda a criatura é como a erva e toda a sua glória como a flor-dos-campos!; a erva seca e a flor murcha, quando o sopro do Senhor passar sobre elas; verdadeiramente, o povo é idêntico à erva... Mas encontro-me já pendurada na parede, observando-nos.

Maria

Maria, a criada, sonolenta de amor, está ocupada a dar lustre a uma panela de cobre. Sente-se avassalada de desejo, lânguida, como se se movesse em círculos debaixo de água. O seu rosto, distorcido pelo reflexo do metal, sorri-lhe. É uma moça do campo, larga e rubicunda, de um apetite saudável. A sua consciência é também um órgão são e adaptável. Quando se deita com Willem na cama embutida na parede por trás do fogão da cozinha, corre a cortina para se proteger do olhar reprovador de Deus. Longe da vista, longe do coração; afinal de contas, casar-se-ão um dia. Maria sonha com o dia em, que o patrão e a mulher morrem, naufragados no mar, e que ela e Willem passam a viver nesta casa, com seis filhos adoráveis. Pensa nesta visão enquanto se dedica às limpezas; e quando a patroa sai, desce as gelosias até meio para não ser vista da rua, mergulhando a sala de visitas na sombra, e caminha então como se se  movesse no fundo do mar. Põe a jaqueta de veludo azul da patroa, de gola e punhos debruados a pele, e passeia-se pela casa, captando de vez em quando a sua imagem nos espelhos. É um sonho inocente; que mal pode fazer?

Maria está agora ajoelhada na sala de visitas, a esfregar os azulejos azuis e brancos, todos eles exibindo a imagem de crianças a brincar, uma com um arco, outra com uma bola. Um deles, o seu favorito, mostra uma criança num cavalo de baloiço. Toda a sala está atapetada com as suas crianças imaginárias, e Maria limpa-as ternamente com um pano. Tendo sido criada no campo, o bulício da rua que lhe chega através das paredes, passos, vozes, todos esses ruídos do Herengracht e o modo como s ruas invadem o seu secreto mundo doméstico, continua a surpreendê-la. O vendedor de flores apregoa com uma voz tão inquietante como o cacarejo de um galispo; o amolador chocalha uma lata para atrair os potenciais fregueses, como se convocasse uma assembleia de pecadores. Alguém, pertíssimo, apregoa e escarra. E ouve então a sineta.

Peixe, peixe fresquinho!, canta Willem com uma voz terrível e desafinada. Robalo, sargo, arenque e bacalhau! E abana a sua sineta. Ela está tão alerta como uma pastora ao ouvir o tilintar do seu amor no meio do rebanho. Maria dá um pulo, assoa o nariz ao avental, ajeita a saia e abre a porta. Está uma manhã tão nevoenta que mal consegue ver o canal do outro lado do passeio. Willem surge do nevoeiro. Olá, meu amor! O seu rosto abre-se num sorriso. O que tens aí?, diz ela. Deixa-me ver. O que queres, Maria, meu patinho? E baixa a cesta ao nível da anca. E se fosse uma bela e gorda enguia? Como é que gostas delas? Tu bem sabes!, e ri por entre dentes. Prefere estufada com damascos e vinagre doce? Mm!, suspira ela, ouvindo o barulho dos barris sendo descarregados de uma barcaça ao fundo da rua e que embatem no chão, pumba! pumba!, repercutindo as batidas do seu coração. Não queres antes um arenque?, pergunta ele. Ou um beijo? Sobe um degrau e quase a alcança. Pumba! pumba! Chiu!, diz Maria, recuando porque vão pessoas a passar. Willem fica cabisbaixo». In Deborah Moggach, A Febre das Tulipas, 1999, Edições ASA, 2017, ISBN 978-989-233-874-3.

Cortesia de EASA/JDACT

JDACT, Deborah Moggach, Literatura, Holanda, Tulipas,