sábado, 31 de julho de 2021

No 31. O Retrato do Rei. Ana Miranda. «E no dia seguinte uma rês podia valer três negras cozinheiras. Avaliava-se uma pistola como um queijo. No Inverno trocava-se um par de meias de lã por uma data num riacho aurífero. É a loucura, dona Mariana, a loucura!»

Cortesia de wikipedia e jdact

O contrato da carne

«(…) O rosto do barão continuava nítido em sua mente: bigodes e cabeleira farta, a testa estreita. Sob os olhos, bolsas membranosas, dobras e sulcos longitudinais como o dorso de uma lagarta. Uma rajada forte de vento fez bater a janela, assustando Mariana. Com um arrepio imaginou seu pai irrompendo na sala; não parava de pensar nele e sentia o rosto em chamas. Quis conversar com alguém. Aurora adormecera numa poltrona. Ouviu o ranger do portão e foi à janela. Tenório cruzava o alpendre, pisando com leveza no chão xadrez de granitos. Nuvens se aproximavam, prenunciando chuva. O mar parecia um enorme buraco sem fundo, cortado por rastos de pequenas embarcações de pesca. Luzes espaçadas tremulavam nas ruas. No jardim as boninas flutuavam com suas grandes flores de corolas brancas abertas.

Tenório viu a baronesa à janela e acenou. O que houve?, disse Mariana. Preciso falar-vos. Tenório subiu as escadas. Mariana acordou Aurora e mandou-a deitar-se no quarto. A criada, sonolenta, cumpriu a ordem murmurando como uma cabeça falante do relojoeiro Gastão. Perdão pela hora, disse Tenório, ao entrar na sala, ofegante. Mas é que estive andando atrás de informações. Cheirava a perfumes femininos, suor. As botas estavam sujas de areia. Tinha os olhos cansados e um sorriso culposo que mostrava dentes velhos manchados de vinho. Tive muito trabalho, mas consegui, disse Tenório. Depois andei em palácio, nas tabernas e na alfândega. Seu hálito fétido causou em Mariana uma sensação de repugnância. Não deveis ir para as Minas, disse o amanuense. Eles estão matando os portugueses. Quem está matando os portugueses? Andastes bebendo novamente? O problema, disse Tenório, recompondo-se para ser mais persuasivo, é que desde que descobriram o ouro, de todos os lugares do mundo homens ambiciosos e sem escrúpulos partiram para o Sertão dos Cataguases. A gente que mora lá não presta. E a que mora aqui? Quem presta? O homem é sempre o mesmo. Mas aqui há pessoas melhores.

Nas Minas habitavam soldados desertores, negros fugidos, homens que abandonavam suas famílias, tripulações amotinadas, mulheres desonestas, frades desfradados, lavradores que largavam suas terras. O lugar é muito perigoso, concluiu Tenório. E das três regiões, a mais inobediente é a das Gerais, onde está vosso pai. Essa região assim era chamada por não estar sujeita às leis que disciplinavam a distribuição das datas de mineração. Estabelecia-se a propriedade de uma jazida por posse, ou por prioridade. Mas eu preciso ver meu pai, disse Mariana. Se é pela herança, vossenhora não necessita partir, ela vos será entregue de qualquer maneira. Podemos mandar um procurador, com alguns escravos fortes. Eu mesmo posso ir. Ele está morrendo, senhor Tenório. Mariana sentou-se na poltrona, quase sem forças, dominada por uma sensação martirizante de que sua vida agora dependia de um gesto, o qual não sabia se seria capaz de fazer. O que dizer de um lugar onde uma cesta de biscoitos pode custar o mesmo que um cavalo?, disse Tenório.

E no dia seguinte uma rês podia valer três negras cozinheiras. Avaliava-se uma pistola como um queijo. No Inverno trocava-se um par de meias de lã por uma data num riacho aurífero. É a loucura, dona Mariana, a loucura!

Os que acumulavam grande quantidade do metal precioso, minerando, vendendo, fazendo contrabando, na sua maioria entregavam-se a deleites e regozijos. Gastavam seu dinheiro com mulheres, tabaco, aguardente, armas. Passavam os dias jogando e as noites a se embriagarem. Andavam escoltados por tropas armadas cometendo actos violentos e impunes. Há mulheres nas Minas? Quero dizer, senhoras?, damas?, perguntou Mariana. O que mais se vê são índias, negras ou mestiças vagando seminuas pelos arraiais, cobertas de pele e ouro, com os cabelos soltos, carregando fachos e dando urros, entregando-se a toda a sorte de excessos nos rituais de fornicação. Os homens sempre sabem onde achar essas mulheres, Tenório disse em tom confessional. Farejam-nas, assim como pressentem o ouro. Onde há ouro há mulheres de vida licenciosa. O lugar abrigava uma corja de errantes e vadios, de quadrilhas hostis, ferozes, gananciosas. Mesmo os principais viviam de lugar em lugar, como os filhos de Israel no deserto». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

 Cortesia de ESchwarcs/CdasLetras/JDACT

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