quinta-feira, 1 de julho de 2021

A Tábua de Flandres. Arturo Pérez-Reverte. «A Partida de Xadrez: Óleo sobre madeira. Escola flamenga. Datado de 1471. Autor: Pieter Van Huys (1415-1481). Suporte: três painéis finos de carvalho, unidos por linguetas falsas»

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Os segredos de Mestre Van Huys

Deus move o jogador e este move a peça. Que Deus por trás de Deus o jogo começa? In J. L. Borges

«(…) Girou o interruptor da lâmpada, descobriu a clarabóia e a luz fria da manhã outonal veio espalhar-se de novo sobre o cavalete e o quadro, iluminando o estúdio cheio de livros, prateleiras com tintas e pincéis, vernizes e diluentes, instrumentos de marcenaria, craveiras e instrumentos de precisão, talhas antigas e bronzes, bastidores, quadros poisados no chão e voltados para a parede sobre uma valiosa carpete persa manchada de tinta e, num canto, por cima de uma cómoda Luís XV, uma aparelhagem de alta fidelidade rodeada por pilhas de discos: Dom Cherry, Mozart, Miles Davis, Satie, Lester Bowie, Michael Edges, Vivaldi... Na parede, um espelho veneziano de moldura dourada devolveu a Júlia, ligeiramente embaciada, a sua própria imagem: cabelo cortado pelos ombros, leves olheiras de sono sob uns olhos grandes e escuros, ainda sem maquilhagem. Atraente como um modelo de Leonardo, costumava dizer César quando, como agora, o espelho emoldurava o seu rosto em ouro, ma piu bella. E embora César pudesse ser considerado mais entendido em efebos do que em madonnas, Júlia sabia que essa afirmação era rigorosamente correcta. Ela própria gostava de se olhar naquele espelho de moldura dourada porque lhe dava a sensação de estar do outro lado de uma porta mágica que, anulando o tempo e o espaço, lhe devolvia a sua imagem encarnada numa beleza renascentista italiana.

Sorriu ao pensar em César. Desde pequena que sorria sempre ao pensar nele. Um sorriso terno, muitas vezes cúmplice. Depois poisou as radiografias sobre a mesa, apagou o cigarro num pesado cinzeiro de bronze assinado por Benlliure e foi sentar-se em frente da máquina de escrever: A Partida de Xadrez:

Óleo sobre madeira. Escola flamenga. Datado de 1471. Autor: Pieter Van Huys (1415-1481). Suporte: três painéis finos de carvalho, unidos por linguetas falsas. Dimensões: 60x87 cm. (Três painéis idênticos, de 20x87). Espessura da tábua: 4 cm. Estado de conservação do suporte: Não é necessário endireitar. Não se observam estragos causados pela acção de insectos xilófagos. Estado de conservação da película pictórica: Boa adesão e coesão do conjunto estratigráfico. Não há alterações de cor. Notam-se craquelures de idade, sem se observarem fendas nem escamas. Estado de conservação da película superficial: Não se verificam marcas de exsudação de sais nem de humidade. Excessivo escurecimento do verniz, devido a oxidação. A capa deve ser substituída.

A cafeteira assobiava na cozinha. Júlia levantou-se e foi servir-se de uma chávena grande, sem leite nem açúcar. Regressou segurando-a numa mão e enxugando a outra, molhada, ao largo camisolão masculino que enfiara por cima do pijama. Bastou uma leve pressão do indicador para que as notas do Concerto para Alaúde e Viola de Amor, de Vivaldi, enchessem o estúdio, deslizando por entre a luz cinzenta da manhã. Bebeu um gole de café negro e amargo que lhe queimou a ponta da língua. Foi depois sentar-se, com os pés nus no tapete, para continuar a escrever à máquina o relatório: Inspecção U. V. e radiológica:

Não se detectam mudanças importantes, transformações ou pinturas posteriores. Os raios X revelam uma inscrição coberta na época, em caracteres góticos, que figura em cópias fotográficas anexas. Não é visível em observação convencional. Pode ser posta a descoberto sem prejuízo para o conjunto mediante a eliminação da camada de tinta no local que a cobre.

Retirou a folha de papel do rolo da máquina e meteu-a num envelope, juntando duas cópias fotográficas. Bebeu o resto do café, que ainda estava quente, e preparou-se para fumar outro cigarro. Na sua frente, sobre o cavalete, face à dama que lia, absorta, junto da janela, os dois jogadores, continuavam uma partida de xadrez que durava há cinco séculos, representada na tábua por Pieter Van Huys de forma tão rigorosa e magistral que as peças pareciam estar fora do quadro, com relevo próprio, tal como os restantes objectos ali reproduzidos. A sensação de realismo era tão intensa que atingia plenamente o efeito procurado pelos velhos mestres flamengos: a integração do espectador no conjunto pictórico, persuadindo-o de que o espaço de onde o contemplava era o mesmo contido no seu interior, como se o quadro fosse um fragmento da realidade ou a realidade um fragmento do quadro. Para tal, contribuíam a janela pintada no lado direito da composição, com uma paisagem exterior para além da cena, e um espelho redondo e convexo pintado no lado esquerdo, na parede, que reflectia os vultos dos jogadores e o tabuleiro de xadrez, deformados pela perspectiva do ponto de vista do espectador, situado para aquém da cena, conseguindo assim o assombroso efeito de integrar os três planos: janela, compartimento e espelho num único ambiente». In Arturo Pérez-Reverte, A Tábua de Flandres, 1990, Edições ASA, 2009, ISBN 978-989-230-61-1.

Cortesia de EASA/JDACT

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