quarta-feira, 30 de junho de 2021

A Tábua de Flandres Arturo Pérez-Reverte. «Só nesse momento compreendeu que A partida de xadrez ia ser algo mais do que simples rotina profissional»

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Os segredos de Mestre Van Huys

Deus move o jogador e este move a peça. Que Deus por trás de Deus o jogo começa? In J. L. Borges

«Um envelope fechado é um enigma que contém outros enigmas no seu interior. Aquele era grande, grosso, de papel manila, com o timbre do laboratório impresso no ângulo inferior esquerdo. E antes de o abrir, enquanto o segurava na mão procurando ao mesmo tempo uma espátula entre os pincéis e frascos de tinta e de verniz, Júlia estava muito longe de imaginar até que ponto esse gesto ia transformar a sua vida. Na realidade, já conhecia o conteúdo do envelope. Ou, como mais tarde veio a descobrir, julgava que conhecia. Talvez por isso não sentiu nada de especial até retirar as cópias fotográficas e estendê-las em cima da mesa, fitando-as vagamente aturdida e retendo a respiração. Só nesse momento compreendeu que A partida de xadrez ia ser algo mais do que simples rotina profissional. Na sua profissão, eram frequentes as descobertas insuspeitadas em quadros, móveis ou encadernações de livros antigos. Seis anos restaurando obras de arte proporcionavam uma vasta experiência de traços e correcções originais, retoques e pinturas sobrepostas, até falsificações. Mas nunca, até àquele dia, uma inscrição oculta sob a pintura de um quadro: três palavras reveladas pela fotografia com raios X.

A garrou no amachucado maço de cigarros sem filtro e acendeu um, incapaz de afastar os olhos das cópias fotográficas. Não havia qualquer dúvida, estava tudo ali, nos positivos das chapas radiológicas de 30 x 40. O desenho original da pintura, uma tábua flamenga do século XV, revelava-se nitidamente no seu pormenorizado desenho com verdaccio, tal como os veios da madeira e as junções coladas das três pranchas de carvalho que formavam a tábua que servia de suporte aos sucessivos riscos, pinceladas e esbatidos que o artista fora aplicando até criar a sua obra. E, na parte inferior, aquela frase oculta que a radiografia trazia para a luz cinco séculos mais tarde, com os caracteres góticos destacando-se nitidamente no branco e negro do fundo: QUIS NEGAVIT EQUITEM.

Júlia sabia latim suficiente para poder traduzir sem dicionário: quis, pronome interrogativo, quem. Necavit, derivava de neco, matar. Eequitem era o acusativo singular de eques, cavaleiro. Quem matou o cavaleiro. Com interrogação, tornada evidente pelo uso do quis, que dava um certo ar de mistério à frase: QUEM MATOU O CAVALEIRO.

Era, no mínimo, desconcertante. Aspirou longamente o cigarro, segurando-o entre os dedos da mão direita, enquanto com a esquerda reordenava as radiografias em cima da mesa. Alguém, talvez mesmo o próprio pintor, inscrevera no quadro uma espécie de enigma, cobrindo-o depois com uma camada de pintura. Ou talvez tivesse sido feito por outra pessoa, mais tarde. Havia aproximadamente uma margem de quinhentos anos para estabelecer a data e esta ideia fez com que Júlia sorrisse interiormente. Podia resolver a incógnita sem grande dificuldade. Aliás, era esse o seu trabalho. Pegou nas cópias fotográficas e levantou-se. A luz acinzentada que entrava pela grande clarabóia do tecto amansardado iluminava directamente o quadro colocado no cavalete. A Partida de  Xadrez, óleo sobre madeira pintado em 1471 por Pieter Van Huys... Estacou à sua frente, observando-o durante longo tempo. Era uma cena doméstica pintada com minucioso realismo quatrocentista: um interior daqueles com que os grandes mestres flamengos, aplicando a inovação do óleo, tinham criado as bases da pintura moderna. O motivo principal era constituído por dois cavaleiros de meia idade e nobre aspecto, um de cada lado de um tabuleiro de xadrez sobre o qual se desenrolava um jogo. Em segundo plano, à direita e junto a uma janela ogival que emoldurava uma paisagem, uma dama vestida de negro lia um livro poisado sobre o regaço. A cena era completada pelos cuidados pormenores próprios da escola flamenga, representados com uma perfeição que raiava o obsessivo: os móveis eenfeites, o lajeado branco e negro do chão, o desenho do tapete e até uma pequena fenda na parede ou a sombra de um minúsculo prego numa das vigas do tecto. O tabuleiro e as peças de xadrez tinham sido executados com idêntica precisão, tal como as feições, mãos e roupagens dos personagens, cujo realismo contribuía para a extraordinária qualidade do acabamento, juntamente com a vivacidade das cores, ainda notável apesar do escurecimento provocado pela oxidação do verniz original com o passar do tempo.

Quem matou o cavaleiro. Júlia olhou a radiografia que tinha na mão e depois o quadro, sem conseguir detectar neste, à vista desarmada, o menor vestígio da inscrição oculta. Um exame mais pormenorizado, com lupa binocular com o poder de ampliar 7 vezes, também não revelou nada de novo. Correu então a grande persiana da clarabóia, escurecendo o quarto para aproximar do cavalete um tripé com uma lâmpada Wood de luz negra. Quando incidiam sobre um quadro, os raios ultravioletas tornavam fluorescentes os materiais mais antigos, tintas e vernizes, deixando a escuro ou a negro os modernos, revelando assim as pinturas e retoques aplicados depois da criação. Mas a luz negra revelou apenas uma superfície fluorescente homogénea que incluía a parte da inscrição oculta. Isto significava que fora tapada pelo próprio artista ou numa data imediatamente posterior à realização da pintura». In Arturo Pérez-Reverte, A Tábua de Flandres, 1990, Edições ASA, 2009, ISBN 978-989-230-61-1.

Cortesia de EASA/JDACT

JDACT, Arturo Pérez-Reverte, Literatura, Xadrês,