terça-feira, 8 de junho de 2021

José Saramago. Objecto Quase. «E logo a seguir, na curva do caminho, apareceu um homem pedalando numa bicicleta, coberto com uma grande folha de plástico preto, por onde a chuva escorria como sobre a pele de uma foca»


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«(…) Desligou o motor, tirou a chave e abriu a porta. Não foi capaz de sair. Julgou que a aba da gabardina se prendera, que a perna ficara entalada na coluna do volante, e fez outro movimento. Ainda procurou o cinto de segurança, a ver se o colocara sem dar por isso. Não. O cinto estava pendurado ao lado, tripa negra e mole. Disparate, pensou. Devo estar doente. Se não consigo sair, é porque estou doente. Podia mexer livremente os braços e as pernas, flectir ligeiramente o tronco consoante as manobras, olhar para trás, debruçar-se um pouco para a direita, para o cacifo das luvas, mas as costas aderiam ao encosto do banco. Não rigidamente, mas como um membro adere ao corpo. Acendeu um cigarro, e de repente preocupou-se com o que diria o patrão se assomasse a uma janela e o visse ali instalado, dentro do carro, a fumar, sem nenhuma pressa de sair. Um toque violento de claxon fê-lo fechar a porta, que abrira para a rua. Quando o outro carro passou, deixou descair lentamente a porta outra vez, atirou o cigarro fora e, segurando-se ao volante, fez um movimento brusco, violento. Inútil, Nem sequer sentiu dores. O encosto do banco segurou-o docemente e manteve-o preso. Que era isto que estava a acontecer? Puxou para baixo o retrovisor e olhou-se.

Nenhuma diferença no rosto. Apenas uma aflição imprecisa que mal se dominava. Ao voltar a cara para a direita, para o passeio, viu uma rapariguinha a espreitá-lo, ao mesmo tempo intrigada e divertida. Logo a seguir surgiu uma mulher com um casaco de abafo nas mãos, que a rapariga vestiu, sem deixar de olhar. E as duas afastaram-se, enquanto a mulher compunha a gola e os cabelos da menina. Voltou a olhar o espelho e compreendeu o que devia fazer. Mas não ali. Havia pessoas a olhar, gente que o conhecia. Manobrou para desencostar, rapidamente, deitando a mão à porta para fechá-la, e desceu a rua o mais depressa que podia. Tinha um fito, um objectivo muito definido que já o tranquilizava, e tanto que se deixou ir com um sorriso que aos poucos lhe abrandara a aflição Só reparou na bomba de gasolina quando lhe ia quase a passar pela frente. Tinha um letreiro que dizia esgotado, e o carro seguiu, sem o mínimo desvio, sem diminuir a velocidade. Não quis pensar no carro. Sorriu mais. Estava a sair da cidade, eram já os subúrbios, estava perto o sítio que procurava. Meteu por uma rua em construção, virou à esquerda e à direita, até uma azinhaga deserta, entre valados. Começava a chover quando parou o automóvel.

A sua ideia era simples. Consistia em sair de dentro da gabardina, torcendo os braços e o corpo, deslizando para fora dela, tal como faz a cobra quando abandona a pele. No meio de gente não se atreveria, mas, ali, sozinho, com um deserto em redor, só longe a cidade que se escondia por trás da chuva, nada mais fácil. Enganara-se, porém. A gabardina aderia ao encosto do banco, do mesmo modo que ao casaco, à camisola de lã, à camisa, à camisola interior, à pele, aos músculos, aos ossos. Foi isto que pensou não pensando quando daí a dez minutos se retorcia dentro do carro aos gritos, a chorar. Desesperado. Estava preso no carro. Por mais que se torcesse para fora, para a abertura da porta por onde a chuva entrava empurrada por rajadas súbitas e frias, por mais que fincasse os pés na saliência alta da caixa de velocidades, não conseguia arrancar-se do assento. Com as duas mãos segurou-se no tejadilho e tentou içar-se. Era como se quisesse levantar o mundo. Atirou-se para cima do volante, a gemer, apavorado. Diante dos seus olhos, os limpa-vidros, que sem querer pusera em movimento no meio da agitação, oscilavam com um ruído seco, de metrónomo. De longe veio o apito duma fábrica. E logo a seguir, na curva do caminho, apareceu um homem pedalando numa bicicleta, coberto com uma grande folha de plástico preto, por onde a chuva escorria como sobre a pele de uma foca. O homem que pedalava olhou curiosamente para dentro do carro e seguiu, talvez decepcionado ou intrigado por ver um homem sozinho, e não o casal que de longe lhe parecera.

O que estava a passar-se era absurdo. Nunca ninguém ficara preso desta maneira no seu próprio carro, pelo seu próprio carro. Tinha de haver um processo qualquer de sair dali. À força não podia ser. Talvez numa garagem? Não. Como iria explicar? Chamar a polícia? E depois? Juntar-se-ia gente, tudo a olhar, enquanto a autoridade evidentemente o puxaria por um braço e pediria ajuda aos presentes, e seria inútil, porque o encosto do banco docemente o prenderia a si. E viriam os jornalistas, os fotógrafos e ele seria mostrado metido no seu carro em todos os jornais do dia seguinte, cheio de vergonha como um animal tosquiado, à chuva. Tinha de arranjar outra maneira». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-004-655-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Política, Cultura, Nobel, MLCT,