sábado, 26 de junho de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «No presente, as abadias de Cluny, Cister e Claraval limitavam-se a defender Paio Mendes, arcebispo de Braga, contra as ambições hegemónicas do prelado de Compostela…»

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Num dos cantos da igreja, logo à direita da porta e bem longe do altar do prior Teotónio, um homem velho e de longas barbas brancas estava ajoelhado em silenciosa reza, de olhos cerrados e apoiado com a mão direita na sua imponente espada. No entanto, o que mais o distinguia não era a singular postura, mas sim o manto branco que o envolvia totalmente, fazendo-o parecer um boneco de neve. Ninguém tivera a ousadia de interromper o seu retiro e a cerimónia de representação da morte de Cristo tinha decorrido sem que o importunassem, e também sem que ele mudasse de posição. Só se mexeu quando dona Teresa se aproximou, acompanhada de Fernão Peres Trava, de Paio Soares e de seu filho Ramiro. Levantou-se, sempre apoiado na espada, e enfrentou-os sério e mudo. Eis o cavaleiro de que vos falei, estimado Paio Soares, anunciou dona Teresa. Chama-se Gondomar e veio de Jerusalém.

Paio Soares esboçou um subtil sorriso ao ouvir aquele estimado. A rainha estava a esforçar-se para recuperar o seu afecto. Observou o visado com curiosidade. O regresso da Terra Santa e o manto branco que o cobria conferiam-lhe uma aura calma e pura. É uma honra, declarou Paio Soares. Os que vão à cidade do Santo Sepulcro são mais santos do que os que ficam. O velho Gondomar retorquiu-lhe: um dia podereis ir também, quem sabe numa gloriosa cruzada. Paio Soares ergueu a sobrancelha, interessado. Prepara-se nova cruzada e pretendem a minha ajuda? A rainha portucalense atrapalhou-se, ligeiramente nervosa. A seu lado, Fernão Peres esclareceu o equívoco: não. A Ordem de Gondomar vai instalar-se no Condado para lutar contra os infiéis. Dona Teresa admirou-o, orgulhosa. O amante expressava-se melhor do que ela. Contudo, era imperativo que falasse, queria cativar Paio Soares, dando um primeiro passo para recuperar o apoio dos relutantes portucalenses.

Vou doar Soure à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo, informou. Paio Soares revelou o seu espanto: para que quereis Soure? Só há lá feras, lobos e ursos! A sua pergunta foi dirigida a Gondomar, que suspirou, como se carregasse às costas o peso de décadas de lutas com os mouros. É a primeira linha do combate. Há que afastar os sarracenos dessas terras, tão ricas e espirituais. Como defende o abade de Claraval, não se combatem os infiéis apenas em Jerusalém! Paio Soares conhecia a influência de Bernardo Claraval na cristandade e sabia igualmente que os franceses haviam sempre apoiado o conde Henrique contra Afonso VI. Porém, humilhado e depois falecido o seu paladino, o partido francês quase desaparecera. No presente, as abadias de Cluny, Cister e Claraval limitavam-se a defender Paio Mendes, arcebispo de Braga, contra as ambições hegemónicas do prelado de Compostela, mas tinham-se alheado das bulhas sangrentas entre os reinos hispânicos. Estariam agora a regressar? Virando-se para a rainha, Paio Soares questionou-a: dona Teresa, quereis que vá batalhar para Soure? A mãe de Afonso Henriques soltou uma curta gargalhada. Cruzes, nem pensar! Queremos o vosso bem! É tempo de vos casardes de novo e de fazer um filho varão! A seu lado, o sagaz Fernão Peres murmurou: vi-vos há pouco a falar com a minha sobrinha Chamoa. Excitado, Paio Soares confirmou o seu encantamento: é muito graciosa e gentil!

O pobre Ramiro, que um dia me reportou esta conversa, estremeceu, aterrado. O pai estava claramente entusiasmado com Chamoa, e ele, que em Ponte de Lima se enamorara, aterrorizou-se com a possibilidade de o progenitor tomar a sua amada e começou a sentir náuseas. Durante muito tempo, ficava assim na presença do pai, o coitado do Ramiro. À sua frente, dona Teresa animou-se: é meu desejo arranjar-vos bom casamento e um cargo honroso! Com fabricada humildade, adiantou: faz-me falta um mordomo-mor. Paio Soares piscou os olhos, confundido. O posto de mordomo-mor era o mais importante na corte e estava vago. Aquele convite significava que o casal régio queria o principal nobre portucalense numa posição de destaque! E a contrapartida era um enlace religioso com aquela belíssima galega... Que vos parece?, inquiriu Fernão Peres Trava». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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