quarta-feira, 16 de junho de 2021

Lucrécia Borgia. Jean Plaidy. «Ela ficou aflita em relação a César, e isso significou que não se preocupou tanto com o seu próprio futuro quanto deveria»


Cortesia de wikipedia e jdact

A Piazza Pizzo di Merlo

«(…) Ela não pensara que tinha pai até que Giorgio fora morar na casa, e então, como Vannozza o chamava de marido, Lucrécia o considerara um pai, mas sabia muito bem que não podia dizer que Giorgio era o pai deles; por isso, ficou calada, esperando que César relaxasse a pressão no seu pescoço e deixasse a ternura voltar aos seus dedos. César aproximara bem o rosto do dela; ele sussurrou: Roderigo, o cardeal Bórgia, não é nosso tio, sua boba; ele é nosso pai. Tio Roderigo?, disse ela, pausadamente. Claro, sua tola. Agora, o aperto dele era suave. Ele pousou os lábios na face fria dela e deu-lhe um daqueles beijos longos que a deixavam perturbada. Porque acha que ele vinha aqui com tanta frequência? Porque iria gostar tanto de nós? Porque ele é o nosso pai. Já estava na hora de ficar sabendo. Agora vai perceber que não vale a pena chorar por gente como Giorgio e Otaviano. Entende isso agora, Lucrécia? Os olhos dele estavam com uma expressão sinistra, não de raiva, talvez, mas de orgulho porque tio Roderigo era pai deles e era um ilustre cardeal que, e para isso eles deveriam rezar todos os dias e noites, um dia poderia vir a ser papa e o homem mais poderoso de Roma. Sim, César, disse ela, porque tinha medo de César quando ele ficava com aquele olhar. Mas quando ficou sozinha, foi para um canto e continuou a chorar por Giorgio e Otaviano.

Mas até mesmo César iria descobrir que a morte daqueles a quem ele considerava insignificantes poderia fazer uma grande diferença para sua vida. Roderigo, ainda solícito quanto ao bem-estar da amante, decidiu que, já que ela perdera o marido, deveriam arranjar-lhe outro; portanto, arrumou um casamento para ela com um certo Carlo Canale. Foi um bom casamento para Vannozza, porque Carlo era o camareiro do cardeal Francesco Gonzaga e um homem de uma certa cultura; ele estimulara o poeta Angelo Poliziano a escrever Orfeo e trabalhara com distinção entre os humanistas de Mântua. Ali estava um homem que poderia ser útil a Roderigo; e Canale era inteligente o bastante para saber que por intermédio de Roderigo ele poderia adquirir a riqueza que até então não conseguira acumular. O notário de Roderigo redigiu os contratos de casamento e Vannozza preparou-se para morar com o novo marido.

Mas se ela ganhara um marido, iria perder os três filhos mais velhos. Aceitou filosoficamente a situação, porque sabia que Roderigo não iria permitir que seus filhos continuassem em casa dela depois de passada a infância; o lar relativamente humilde de uma matrona romana não era o ambiente certo para aqueles que tinham um destino brilhante pela frente. Assim aconteceu a maior de todas as mudanças na vida de Lucrécia. Giovanni deveria ir para a Espanha, onde se juntaria ao irmão mais velho, Pedro Luís, e onde o pai providenciaria para que lhe fossem concedidas honrarias; e estas honrarias deveriam ser do mesmo vulto que as concedidas a Pedro Luís. César deveria ficar em Roma. Mais tarde, iria fazer os estudos para entrar para uma diocese espanhola, e para isso precisava estudar a lei canónica nas universidades de Perugia e Pisa. Por enquanto, ele estava com Lucrécia, mas os dois deveriam deixar a casa da mãe em breve, indo para a de uma parenta do pai; lá, seriam educados como convinha aos filhos de um pai como o deles.

Aquilo foi um golpe tremendo para Lucrécia. Tudo o que significara um lar para ela durante seis anos iria acabar. O golpe foi rápido e repentino. A única pessoa que se alegrava naquela casa que dava para a Piazza Pizzo di Merlo era Giovanni, que cambaleava de um lado para o outro da ala infantil, brandindo uma espada imaginária, curvando-se numa reverência fingida diante de César, a quem chamava de senhor bispo. Giovanni, dominado pela excitação, falava sempre na Espanha. Lucrécia observava César, que ficava de braços cruzados, o rosto branco de raiva reprimida. César não tinha ataques de raiva, não gritava que ia matar Giovanni; pela primeira vez, César estava derrotado. A primeira mudança importante na vida deles tinha sido feita e todos tinham de aceitar o facto de que, por mais que pudessem jactar-se na ala infantil, não tinham alternativa a não ser obedecer ordens. Só uma vez, quando estava a sós com Lucrécia, foi que César berrou enquanto batia os punhos contra as coxas com tanta violência que Lucrécia achou que ele devia estar se machucando: Porque ele tem de ir para a Espanha? Porque eu tenho de entrar para a Igreja? Eu quero ir para a Espanha. Quero ser um duque e um soldado. Você acha que não sou mais talhado para conquistar e governar do que ele? É porque o nosso pai gosta mais dele do que de mim que Giovanni o levou a fazer isso. Eu não vou suportar. Não vou.

Então, segurou Lucrécia pelos ombros e seus olhos faiscantes a amedrontaram. Eu lhe juro, irmãzinha, que não vou descansar enquanto não ficar livre..., livre da vontade de meu pai..., livre da vontade de quem quer que tente me reprimir. Lucrécia só conseguiu murmurar: ficará livre, César. Sempre vai fazer o que quiser. E então ele de repente soltou uma gargalhada e deu-lhe um daqueles abraços violentos que ela conhecia tão bem. Ela ficou aflita em relação a César, e isso significou que não se preocupou tanto com o seu próprio futuro quanto deveria». In Jean Plaidy, Lucrécia Borgia, Edição Record, 1996, ISBN 978-850-104-410-5.

 

Cortesia de ERecord/JDACT

 

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